quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Migalhas que ficaram IV

fotografia de c.c.





O Tio Domingos Cereijeiro



O Tio Domingos Cereijeiro era um pobre jornaleiro que vivia na atraente encosta de Casais com a mulher e dois filhos. O homem viera lá das bandas do norte, e, o nome que constava nos registos oficiais, era Domingos Alves; do povo é que recebera a alcunha de Cereijeiro, que tanto o irritava.
De temperamento rude e áspero, ele reagia sempre com energia e, às vezes, até com violência, quando aos seus ouvidos soasse aquele nome que, para si considerava tão insultuoso e ofensivo. Uma frase, gesto ou alusão a título para ele tão pejorativo, tinha logo da sua parte uma advertência, que era uma ameaça, em voz de falsete como regougo de raposa aluada.
- O amigo trate bem, querendo...
De espírito aventureiro e seguindo as instruções do livro de S. Cipriano, que ouvira ler, meteu-se, ele e outros, a escavar solo e fraguedos no vizinho monte da Cividade, à procura de decantado tesouro que uma “moura encantada” avaramente ali escondera. Nada encontraram do que ambicionavam e esperavam recolher; mas puseram a descoberto restos de um Castro Romano que abandonaram por não serem esses tesouros o motivo da sua busca.
Notava-se-lhe no nariz um pequeno desvio que, a imaginação popular atribuía ao diabo, quando uma noite o tentou raptar, chegando mesmo a arrasta-lo da cama em que dormia até à cozinha, por lhe ter rescindido um pacto que com ele tivera. Valeu à vítima ter lançado mão de uma caixa de lumes-prontos, que se encontrava em cima da lareira e, ao fazer lume, acendendo um, o diabo terá fugido espavorido.
Soube-se mais tarde que a coisa resultara dum violento impacto com o nariz na nuca doutro parceiro, que se erguia ao mesmo tempo que ele se baixava numa volta do “jogo do sapato”.
Decorridos anos –bastantes anos – o mesmo parceiro, dominado por um forte ataque de fúria etílica, vibrando violento murro no nariz do pobre homem, atenuou-lhe a mazela.
=.=
O caminho para Casais virava à esquerda no lugar de Chãos, na esquina do campo da Tia Maria Rosária, e afundava-se adiante, a dois saltos de lebre, na Melroeira. De ribas altas e coberto de urgeirais e silvedos densos, parecia um túnel. Nas rampas altas sobressaiam, aqui e ali, as fibrilhas que o desprendimento de terras deixava descobertas.
Na bifurcação, numa chãzinha de terra silicosa batida pelo trânsito e lisa como uma eira, os rapazes, na volta da escola, assentavam arraiais para as suas actividades lúdicas. Uma fita de musgo verde-negro e relva, que os dentes afiados das ovelhas da Ti Rosária, avidamente retouçavam, quando vadiavam por aqueles sítios, orlava os bordos da encruzilhada.
=.=
Duma vez que os rapazes ali estacionavam, ocuparam-se uns a observar a marcha lenta de um cárabo que vagarosamente atravessava o caminho; outros foram aos cogumelos eduis, que os havia na devesa do Martins, para os comerem depois de assados nas brasas com sal; finalmente outros ficaram em competições desportivas.
-Vamos à luta?
E formou-se logo um círculo a presenciar a sessão de luta "greco-romana" que ia seguir-se.
Eis que um dos lutadores, querendo sair vitorioso da competição, engancha uma perna na do adversário para o derrubar.
- Não vale enganchar!...Não vale enganchar!... - clamaram os circunstantes a bater com o punho da mão direita na palma da esquerda e aos saltinhos, a pé junto, nas pontas dos pés. Ao mesmo tempo, um que se arvorara em árbitro, destacava-se a endireitar os contendores.
- Ai o menino!... Assim não vale!...
=.=
O Zé da Ana Rita frequentava a 1ª classe. Era um menino sossegado, tímido e delicado. Trajava à maruja, de calção azul até meia perna e blusa da mesma cor com pala a recobrir os ombros, com debrum branco.
O Manuel Póvoas, buliçoso e folgazão, tentou arrastá-lo também para uma luta; mas ele recusou-se e ia resistindo até ao limite das suas forças. Assim desafiado e consumido, já desesperava, quando assomou à boca da Melroeira o Ti Domingos Cereijeiro que se dirigia açodado para o trabalho da tarde. De joanetes salientes e pernas cambas, vinha descalço e em mangas de camisa, arregaçadas.Trazia na mão esquerda um serrote com os dentes para cima, e no ombro direito um machado com o ferro sobre a omoplata e o cabo para a frente.
Ao avistá-lo, luziu na mente da pobre criança uma esperança de protecção amiga contra as impertinentes arremetidas do irrequieto condiscípulo. Confiado na eficácia do auxílio que implorava, bradou em voz alta
- Estás quedo?... Anda que vem acolá o Ti Domingos Cereijeiro e ele diz-te como é!...
Ó Céus!... O que ele foi dizer!..?!
O homem que ouvira à distância o aflitivo, mas para ele injurioso apelo, rompe furibundo na direcção dos dois e, quando o reclamante supunha, radiante em seu íntimo, que ia ser libertado e protegido, sentiu na cabeça o duro martelar do manípulo do serrote como severo castigo do imprudente apelo.
- Quem é o Cereijeiro?... Quem é o Cereijeiro?... - bradava ele indignado, enquanto batia desalmadamente na cabeça da indefesa criança, que inutilmente procurava defender-se com as mãos, da imprevista e brutal agressão.
E, depois de ter impiedosamente zurzido aquela cabeça, fez-se aos jarretes.
Entretanto porém, uma impertinente perturbação começava a atormentar-lhe o espírito. Acossado por uma pontinha de remorso que lhe ia bordejando a consciência, acusando-lhe a rudeza e iniquidade do castigo, ele magicava em solilóquio surdo, a tentar defender-se:
-Olha cá, agora!... Um fedelho a insultar um homem!...Eh!... como se eu fosse da igualha dele!...
Mas, dos abismos da sua alma, iam, ao mesmo tempo, emergindo peculiares complacências que lá estavam guardadas.
-E daí...sim...- ia ele caindo em si -talvez o rapaz não tenha dito aquilo por zombaria...- Pois não...não disse.- Ele diz o que ouve... -E, então, a culpa não é dele; é dos outros; dos que ensinam esses e outros erros às crianças. -Esses, sim; esses é que são, em verdade, os únicos culpados.
E a infeliz criança, que não quisera entrar na competição para onde o seu amigo o forçava, ficou estarrecido, com as lágrimas nos olhos, a apalpar os "galos " na cabeça, com os dedos das mãos, pisados, e arrependido da errada opção que fizera.

Rates, Julho de 1970
Joaquim D. Cancela

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Madrigal

Tu já tinhas um nome, e eu não sei

se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.

Nos meus versos chamar-te-ei amor.(...)

Eugénio de Andade



terça-feira, 20 de outubro de 2009

No Palácio de Catarina a Grande

rococó flamejante-obra de Bartolomeo Rastrelli



fotos de c.c.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Homenagem


GRITO de AMÁLIA

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

de vez em quando é preciso gritar


GRITO
de Munch


UIVO de Ginsberg

para Carl Solomon
-fragmento-

“ Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura,
morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca
de uma dose violenta de qualquer coisa,
"hipsters" com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contacto
celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando


sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos

sem água quente, flutuando sobre os tectos das cidades contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram
anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados

das casas de cômodos,
que passaram por universidades com os olhos frios e radiantes
alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake entre os estudiosos da guerra,

que foram expulsos das universidades por serem loucos e publicarem

odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descasca-
da em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestas de papel, escutando o Terror através da parede,
que foram detidos em suas barbas públicas voltando por Laredo

com um cinturão de marijuana para Nova York,
que comeram fogo em hotéis mal-pintados ou beberam tereben-
tina em Paradise Alley, morreram ou flagelaram [ ... ] ”.