terça-feira, 28 de dezembro de 2010

domingo, 26 de dezembro de 2010

POESIA

O Natal de 2010

Ladainha dos póstumos Natais


Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

 
 David Mourão-Ferreira

.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Concurso de Natal 2010 da Barbearia do Senhor Luis


Destina-se este exemplar ao creditado Concurso de Natal 2010 , da Barbearia do Senhor Luis.
OVELHAS DE PRESÉPIO
Sem manipulações nem artifícios, esta ovelha apresenta-se fofa, bem coberta de lã, e lá para Abril, época da tosquia, está óptima para ser tosquiada.
Com tesouras e navalhas tão afiadas como as usadas nessa barbearia, espero bem, que lhe poupem a pele e evitem as golpeaduras.
Confio na jurisprudência do magnífico júri e claro está na sua aceitação para um honroso 1º lugar.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O 1º mês do João Maria

PRECE


Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.
.
Sophia de Melo Breyner Andresen

in"No Tempo Dividido"

terça-feira, 23 de novembro de 2010

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Edward Hopper

Hopper, pinta a solidão.
Neste quadro de 1940, sente-se o isolamento daquele que vê passar... e fica só.

Música sempre

terça-feira, 16 de novembro de 2010

POESIA

Edward Hopper


Coral

Sei que estou só e gelo entre as folhagens
Nenhuma gruta me pode proteger
Como um laço deslaça-se o meu ser
E nos meus olhos morrem as paisagens.

Desligo da minha alma a melodia
Que inventei no ar. Tombo das imagens
Como um pássaro morto nas folhagens
Tombando, se desfaz na terra fria

Sophia de Mello Breyner Andersen

domingo, 14 de novembro de 2010

POESIA

E. HOPPER

Crepúsculo


É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.

Davide Mourão Ferreira

domingo, 7 de novembro de 2010

dorme meu menino

a estrêla d'alva
já a procurei e não a vi
se ela não vier de madrugada
outra que eu souber,
será p'ra ti...

sábado, 6 de novembro de 2010

O João Maria chegou há um instante


(...)Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais
Do fundo do mar.
Eu nasci há um instante.(...)
.
Sophia de Mello Breyner
in Coral

terça-feira, 19 de outubro de 2010

a praia deserta



As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.
.
Sophia de Mello Breyner
em Dia do Mar

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

fim de verão

Moledo - ontem



O Sol liquefaz-se, é rio;

A sua luz, água ao vento;

Sobre o mar turvo, cinzento,

Tem qualquer coisa de frio.



Chamam-lhe Deus os pagãos.

Depois, o Sol, quando passa

Solta os cabelos, com graça,

Deixa-nos oiro nas mãos...
.

Pedro Homem de Melo
em Bendito

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Música sempre

Pela mão de P.B. cheguei aqui. Espero que gostem da minha opção.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Selecção eliminada do Mundial


É claro que a Espanha foi mais convincente, e o resultado até não lhe fica mal.
Mas sem dúvida que Fábio Coentrão, e Eduardo não mereciam ter perdido. Foram notáveis, merecem os nossos elogios, e quer-me parecer que se tivessem chegado aos penaltys, com um guarda- redes desta craveira, poderiam bem ter ganho.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Migalhas que ficaram VII

almotolia




O Sr. José Frango
 

Sim, traga com fartura...



O seu nome era José da Silva Arcos, mas a família tinha a alcunha dos "Frangos". Por isso, na gíria popular, por ela é
que assim eram todos designados.
O Sr. José Frango fora até ao Brasil donde trouxera algumas economias que lhe serviam de ajudóiro a uma vida sem desaprumos. Mas depois que regressou ao seu lar, administrava o amanho dumas pequenas e magras courelas pelos seus familiares.
A moradia estava situada na encosta da Lomba. Era uma modesta casa térrea e torre com as indispensáveis instalações agrícolas.
A Lomba fica no flanco noroeste do monte de Casais. A seus pés correm as águas dos Urdais que ali ao pé se vão juntar às do Este, depois de ter andado pelas Felgueiras e pelas Arroteias.
O vale que os dois fertilizam e regam, é úbere. Os viçosos prados sempre verdejantes com as forragens dos gados, os triguedos das searas, as frondosas ramarias dos choupos e salgueiros que marginam a corrente, e os vinhedos que circundam os campos, são um deleite aos olhos de quem observa.

Para o Sr. José Frango, a Lomba era uma ampla açoteia natural, donde podia admirar e gozar um maravilhoso panorama que dali se lhe patenteava.
Se volvia os olhos para o nascente, deparava com uma extensa planície para lá da Cancela do Cerco, por onde corriam as lebres ladinas e se acoitavam raposas matreiras. As copas dos pinheiros que a revestem e cobrem, semelham um tapete de veludo em tons verde-negros. E quando o Bóreas enfurecido começa a bufar, a sacudir e vergar as suas ramarias, assiste-se a um curioso e ciclópico espectáculo, semelhante aos galopes épicos de belicosos esquadrões em luta. Passada a fúria, regressa a calma; e então pode-se contemplar aquelas pontas erguidas para o céu em serena e pacífica quietude.
Mas se olhasse para ocidente, o panorama era completamente diferente. Emoldurado pelas Pedregulhas e o morro pinígero da Quinta de Baixo, o quadro era surpreendente de boculismo e beleza. Sobre um fundo azul com pinceladas de esmeralda e ocre, surge a silhueta esguia da igreja paroquial, de grimpa ponteaguda a recortar-se no espaço do infinito. Por vezes os raios luminosos do sol no ocaso, difundindo-se por entre os farrapos de alguma nuvem arredia, projectando-se para além, matizam o horizonte como de tela se tratasse, de zarcão e púrpura.
E se olhasse na direcção do quadrante de nordeste, a vista ultrapassava para além da ourela da freguesia, destacando-se a cumiada da Serra de Rates e
o vale extenso.
E era aqui que o Sr. José Frango desfrutava e gozava os seus dias, não permitindo que se esquecesse o seu estatuto de "brasileiro" ao qual, sempre se associava a ideia de abastança.
.-.
A mulher acerca-se. Traz na mão uma almotolia grande, de canada, para o azeite. E anunciando que é preciso dele prover-se, interroga da porção que deseja que ela traga:
- Então, quanto será melhor trazer?
- Sim, - responde ele a fanfarrear aparências de grandeza - traga que chegue; traga com fartura para não andar sempre a comprar.
- Mas então, vá ... diga quanto hei-de trazer.
- Traga que chegue. Aí ... um quarteirão dele...
E lá vai ela, a mulher, toda empertigada, com aquela avantesma na mão para trazer dentro dela um quarteirão de azeite;" para não andar sempre a comprar".
Rates ( anos 60)Joaquim D. Cancela

Canada - 1,5 l
Quarteirão - 0,125 l

sábado, 22 de maio de 2010

22 de Maio

A homenagem a minha Mãe, no dia que era dos seus anos.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O dinheiro de São Pedro



De tal modo imitou o papa a singeleza
do mártir do calvário
que, à força de gastar os bens com a pobreza,
tornou-se milionário.

Tu hoje podes ver, ó filho de Maria,
o teu vigário humilde
conversando na Bolsa em fundos da Turquia
com o Barão Rotschild.

A cruz da redenção, que deu ao mundo a vida,
por te haver dado a morte,
tem-na no seu bureau o padre-santo erguida
sobre uma caixa forte.

E toda essa riqueza imensa, acumulada
por tantos financeiros,
o que é a economia, oh Deus ! foi começada
só com trinta dinheiros !
.
Guerra Junqueiro

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O CANTO DA TERRA

Der Trunkene im Frühling (“O Bêbado na Primavera”) o quinto andamento do Canto da Terra, é um hino aos prazeres da bebida. Um pássaro desperta o ébrio e, informa-o, que a primavera chegou durante a noite. O ébrio protesta e diz que não acredita ter nada a ver com a primavera ou o canto dos pássaros:

Und wenn ich mich mehr singen kann,
So schlaf’ ich wieder ein,
Was geht mich denn der Frühling an!?
Lasst mich betrunken sein!

“E se não posso mais cantar,
então durmo de novo,
que me importa a primavera?
Deixai-me com a minha embriaguez!”

segunda-feira, 3 de maio de 2010

VELHA SABEDORIA



Somos compradores de vinho novo e velho,

E ao mesmo tempo vendedores do mundo ao preço de dois

grãos de cevada

Perguntaste: "Após a morte para onde vais?"

Traz-me vinho! e vai tu onde quiseres.


Umar-i Khayyãm
poeta astrónomo e matemático persa
(1048-1132,d.C.)

O DOURO ontem na foz do SOUSA




Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.
.
Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
-surdo,subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?

Eugénio de Andrade

sábado, 1 de maio de 2010

MAIO

O meu País



O meu país sabe às amoras bravas

no verão.

Ninguém ignora que não é grande,

nem inteligente, nem elegante o meu país,

mas tem esta voz doce

de quem acorda cedo para cantar nas silvas.

Raramente falei do meu país, talvez

nem goste dele, mas quando um amigo

me traz amoras bravas

os seus muros parecem-me brancos,

reparo que também no meu país o céu é azul.


sophia de mello breyner
As Amoras

segunda-feira, 26 de abril de 2010

O cravo vermelho


Por estes dias vão continuar as críticas e os comentários ao que foi visto e dito na Assembleia da República.
Hoje destaco aqui

CRAVO VERMELHO AO PEITO

Os cravos nas lapelas de Aguiar-Branco e Passos Coelho provam apenas que a direita portuguesa precisou de 36 anos para se libertar da sua relação complexada com a ditadura e fazer as pazes com a revolução.
(...)Por ser tão tardio (e ainda não chegou ao Presidente da República), o gesto simbólico e concertado dos dirigentes do PSD denuncia o problema de identidade em que o partido viveu até hoje.(...)

Não por acaso, fá-lo no momento em que pede mais uma revisão constitucional (a citação de Lenine, por ser apenas provocadora, tirou força ao gesto). Ou seja, assume-se o símbolo para o colocar na prateleira da história e retirar-lhe força política. Assume-se o cravo para se poder renegar definitivamente a herança ideológica da revolução, fazendo passar a ideia de que as suas propostas representam o futuro e não um ajuste de contas com o passado.

Extraordinário que não tenham percebido há mais tempo que esta era a táctica mais inteligente. Durante anos ofereceram à esquerda o imaginário da esperança, da festa e da liberdade. Coisa que, com a história da direita portuguesa, foi mais do que justa. Mas facilitaram tanto…

domingo, 25 de abril de 2010

O Cravo Vermelho

cartaz do 25 Abril

Lenine, Rosa de Luxemburgo, citados por Aguiar Branco?

A este propósito, transcrevo uma parte d'este artigo "NÃO FOI UM PASSEIO NO PARQUE" de Zé Neves.
(...)Agora, de uma coisa haverá seguramente que defender Abril. Da sua patrimonialização abusiva. Aguiar Branco tem todo o direito em meter o cravo à lapela e fica-lhe bem. Dispensa-se é a poesia barata segundo a qual Abril foi feito "para todos os portugueses". Não foi. Foi feito por muitos portugueses e por muitos não-portugueses mas foi feito contra alguns portugueses. Daqui a nada estão a dizer que os descobrimentos foram feitos para toda a humanidade, só os escravos é que demoraram algum tempo a perceber. A isto acresce que alguns desses portugueses contra o qual Abril foi feito pertenceram à direita portuguesa e a ela pertencem. Hoje é feriado nacional e por isso todos estamos sob o espectro de Abril, mas o pior que poderia acontecer era esquecermos o antagonismo que pauta toda e qualquer revolução. Esse antagonismo não é um "mal necessário" ou um "excesso", mas é a própria essência da revolução a que daqui brindamos. Abril foi um passeio revolucionário no parque. Não foi apenas um passeio no parque.(...)

O 25 de Abril




Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen
O Nome das Coisas

terça-feira, 13 de abril de 2010

novo livro




O MIÚDO QUE PREGAVA PREGOS NUMA TÁBUA
(excertos)

cap. 24

É possível que alguns leitores se interroguem sobre o que é, ao fim e ao cabo, este livro, e qual a sua relação, se alguma existe, com a literatura. Para dizer a verdade, não sei. Mas o miúdo que pregava pregos numa tábua, ou talvez o autor, quem sabe se eu próprio, já uma vez escreveu que, para ele, a poesia está aquém e além da literatura. E até confessou que de literatura pouco ou nada sabe. Mas sabe de um rio e de uma ria ou, se preferirem, sabe dos rios e dos mares e da influência da lua nas correntes e nas marés e, ao que parece, no fluxo do sangue, sabe do voo e do grito da narceja, que é um alerta e, ao mesmo tempo, um viva à liberdade. E sabe da respiração da terra, que essa, sim, tem a ver com o ritmo e respiração da escrita. Num certo sentido já fez essa respiração boca a boca quando, na Nicarágua, acompanhado pelo poeta Fernando Silva, que se dizia descendente de portugueses, se sentou no rebordo da cratera do vulcão Santiago e sentiu o bafo que ritmadamente saía das entranhas da terra.
- Parece um boi a respirar - disse o poeta nicaraguense.(...)

cap. 30

- Parece que está a falar com Deus - suspira o da Cancela, depois de ouvir o Concerto nº5 de Beethoven.
- Não acho - diz o miúdo que olhava as águas do rio -, não sei se alguém fala com Deus ou se Deus é apenas um quê, assim mesmo, um quê sem ponto de interrogação. Seja como for, se alguém fala com esse mistério é Bach, porque talvez o Quê, agora com maiúscula, seja uma sequência matemática, um número lá no meio ou no fim, e isso é a música de Bach, uma interrogação contínua, uma equação a uma infinidade de incógnitas. Mas talvez não só Bach, talvez por vezes, o flamenco, quando a voz do homem ou da mulher parece vir do fundo da terra, ou quando na guitarra os dedos tocam uma sequência parecida com Bach. E Amália. E também certos poemas. Poucos.
- Devias escrever isso.
- É o que estou a fazer.

Manuel Alegre

.
Lido de uma só respiração, este livro, é um poema feito em prosa.

terça-feira, 6 de abril de 2010

domingo, 4 de abril de 2010

Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho

fotografia de Sofiinha

Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma a si
e vou tresvaliando, como em sonho.

Isto passado, quando me desponho,
e me quero afirmar se foi assi,
pasmado e duvidoso do que vi,
m'espanto às vezes, outras m'avergonho.

Que, tornando ante vós, senhora, tal,
Quando m'era mister tant' outr' ajuda,
de que me valerei, se alma não val?

Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.

.

Sá de Miranda


O sol é grande

O Berço da Nacionalidade-hoje



O sol é grande, caem co'a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-m'-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

ó cousas, todas vãs todas mudaves,
qual é tal coração qu'em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d'amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m'eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!
.
Sá de Miranda

quarta-feira, 31 de março de 2010

Páscoa feliz



ALELUIA

Não foi milagre ressurgir, Senhor,

Num dia natural de primavera.

Tudo ressurge quando tem calor.

É por calor que toda a morte espera.

Milagre era acordar no inverno, era

Subir da cova frio como a dor,

E, com neve nas dobras da quimera,

Mostrar a Madalena a carne em flor.

Contra a seiva da vida e a sua lei

É que valia a pena demonstrar...

Viver dentro da morte é que era um salto!

Assim, vejo-te apenas como sei:

Um corpo que parou de levedar,

E veio à tona ver o céu mais alto.

.

Miguel Torga

sexta-feira, 26 de março de 2010

As artes entre as letras

Vem publicado, esta semana, no jornal "As artes entre as letras"um belíssimo artigo de Maria Luiza Malato (F.L.U.P.) que é importante ler-se.


Os Justos de Albert Camus depois do 11 de setembro


Há datas em que vemos morrer o mundo tal como o conhecíamos. Nem sempre nos damos conta dessa morte, embora ela tenha sido anunciada, ou lentamente se consciencialize o luto, nas fases clássicas do modelo de Kübler-Ross: negação, cólera, negociação, depressão e aceitação. Mudamos nós e muda o mundo: individual e colectivamente, perante a falência dos valores em que fomos educados e a emergência da nova ordem de paradigmas em que nos pedem para viver. Primeiro, assistimos incrédulos. Depois, criamos eixos do mal. Ponderamos o tipo de aliados. Constatamos os longos fracassos. Aceitamos finalmente “viver sem”, porque temos de viver com tudo o que entretanto aprendemos.

Só depois organizamos o tempo histórico segundo esses ritmos de aprendizagem. Antes e depois do 11 de Setembro. Antes e depois do Holocausto. Antes e depois da Revolução Soviética. Antes e depois da Revolução Francesa… Essa organização é o desejo de compreendermos a nossa sociedade, aqui e agora, e é ele que nos faz ir buscar autores de outras épocas e de outras mortes, sempre em distinto retorno. A “redescoberta” da obra de Albert Camus neste princípio de milénio talvez tenha também a ver com essa “nostalgia de nós” que nos faz rever leituras e procurar no passado lições para o presente. Camus sabe que a Guerra de 39-45 e o Holocausto assinalaram o fim da sua juventude: “todas as gerações, sem dúvida, se julgam fadadas para refazer o mundo. A minha sabe, no entanto, que não poderá refazê-lo. A sua tarefa é talvez maior. Consiste ela em impedir que se desfaça, partindo unicamente das suas negações” (Discursos da Suécia). A geração actual, que cresce entre a memória de cataclismos passados e o anúncio de cataclismos futuros, talvez compreenda melhor estas palavras do que “a geração” que existiu abstractamente entre elas: a que acreditava nos fins da História, marxistas ou demo-liberais, no desaparecimento das guerras frias depois da queda do muro de Berlim, ou no paradisíaco choque tecnológico de Tofler.

Surpreende-nos por isso um pouco que, neste contexto, a obra de Camus Os Justos (1949), traduzida por António Quadros, não tenha sido reeditada em Portugal. Mas é também significativo que a homenagem feita a Camus no CCB, a 10 de Janeiro deste ano, tenha incluído a projecção do filme Os Justos (2007), realizado a partir de uma encenação de Guy-Pierre Couleau. Os Justos, peça inspirada num facto histórico, é a “mise-en-scène” de uma “nova ordem”: uma célula terrorista, na Rússia czarista, prepara um atentado contra o Grão-Duque, a imagem do tirano, um obstáculo à Utopia de “uma terra de liberdade que acabará por libertar o mundo inteiro”. A intriga é progressivamente a consciência desse orgulho desmedido do libertador, que a natureza se encarregará de castigar: “Não pertencemos a este mundo: somos os justos. É-nos estranho um certo calor”. “Talvez seja essa a justiça do mundo”, concluirá uma das personagens. Escrita no pós-guerra, pressupõe as questões que derivam da consciência do cataclismo, mas também aquela última questão só possível depois de tudo aceitarmos como inevitável: até onde pode ir o nosso “viver sem”? Do que é que prescindimos (ou parecemos dispostos a prescindir) em nome da “nossa segurança”, da “estabilidade da nova ordem”? Porque todo o mecanismo de estabelecimento dessa nova ordem está imbuído de inevitabilidade e de eficácia. Percorre a futura nova ordem um não dissimulado mecanismo silogístico em que a premissa individual só demonstra o carácter absoluto da premissa geral.

Aceitemos. A aceitação é sempre uma forma de compreensão. Mas, ainda depois de aceitar, teremos de saber “como nos vamos comportar” perante a imperfeição do mundo? O âmago de O Homem Revoltado (1951) ou de A Queda (1956) está já em Os Justos (1949): “Decidimos não agir, mas isso equivale pelo menos a aceitar a eliminação do outro, na condição de lamentar harmoniosamente a imperfeição humana. Ou Imaginamos substituir a acção pelo diletantismo trágico, mas isso leva-nos a considerar a vida humana como uma vantagem lúdica. Podemos também propor o empreendimento de uma acção que não seja gratuita. Mas neste caso, não existindo qualquer valor superior que oriente a acção, tudo será decidido tendo em conta a eficácia imediata” (O Homem Revoltado). O mundo de Os Justos é, num primeiro plano, esta reflexão sobre a eficácia, numa sociedade de mestres e escravos, representada, no primeiro acto, pelo protagonismo de Stepan: “É preciso disciplina”, “Nada do que serve a causa pode ser desaconselhado”, “Sim, sou brutal (…), não estamos aqui para nos deslumbrarmos, mas para conseguirmos ter êxito”. O contraponto é feito entre Stepan e Kaliayev, denominado “o Poeta”: Kaliayev que se recusa a lançar a bomba para a carruagem do Grão-Duque quando o vê acompanhado por duas crianças. Kaliayev que se diverte quando toma identidades secretas, que inventa um toque de campainha para se fazer anunciar aos companheiros, que ama a vida, a beleza e a alegria mais ainda do que a justiça: “Amar-me-ias tu, ligeira e despreocupada?”, pergunta Dora. – “Morro do desejo de te dizer que sim”, responde Kaliayev. Edmond Burke, comentador dos excessos da Revolução Francesa, identificara já esse estranho sublime do homem em ruptura, um delicado equilíbrio entre o perigo e o deleite que o perigo proporciona: “as paixões que dizem respeito à conservação do indivíduo baseiam-se na consciência da dor e do perigo, ao passo que as que visam a criação têm a sua origem na alegria e no prazer” (The Philosophical Enquiry, I, 8). Os planos e os actos seguintes de Os Justos serão uma progressiva desmontagem da eficácia e dos seus limites. Os limites da eficácia são a fragilidade das crianças e a seriedade do seu olhar: “nunca aguentei esse olhar”. Os que libertamos e não querem ser libertados. Os que matamos e depois sabemos serem melhores do que os que salvamos. Os outros que depois da nossa morte social nos usarão para os seus interesses pessoais. A honra ou a delicadeza que se tornarão luxos de privilegiados. Até chegarmos a perder essa ternura extrema de viver ou morrer sem o orgulho da vitória, como reivindica Kaliayev: “o sol brilha, os rostos se inclinam docemente, o coração esquece a altivez, os braços abrem-se”. Camus tem em comum com Burke essa tensão ambivalente entre o perigo e a alegria: ambos compreendem essa vertigem irracional que leva “os justos” a desejar lançar a bomba, e os faz caminhar sem medo para a morte: aliás, “é tão mais fácil morrer pelas nossas contradições do que viver nelas”. Mas ambos recuam, como Kaliayev, perante os abusos em nome da justiça, da liberdade ou da fraternidade: “viste as crianças?”. Há em todo o sublime desconcerto do mundo uma ironia trágica que, a partir de uma certa desmesura, confunde as vítimas e os carrascos. Mary Wollstonecraft afirmava que Burke, se fosse francês, seria revolucionário, exactamente na medida em que, como inglês, era contra-revolucionário. Também simbolicamente o carrasco de Kaliayev será um companheiro de cela que, por o executar, verá descontado o tempo da pena.

Difícil é não verter sangue inocente quando se atinge o fio da navalha. Mas que desafio mais importante tem hoje a nossa época de eficácia?
.
Retirado do "Ir ao Fundo e Voltar"

terça-feira, 23 de março de 2010

Poesia

Olympia-E. Manet
Museu d'Orsay


Penélope

mais do que um sonho: comoção!
sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

e recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.
.
David Mourão-Ferreira
As Tormentas


domingo, 21 de março de 2010

No dia mundial da poesia

Le déjeuner sur l'herbe- E. Manet
(Museu d'Orsay)

Poesia

Se todo o ser ao vento abandonamos

E sem medo nem dó nos destruímos,

Se morremos em tudo o que sentimos

E podemos cantar, é porque estamos

Nus em sangue, embalando a própria dor

Em frente às madrugadas do amor.

Quando a manhã brilhar refloriremos

E a alma possuirá esse esplendor

Prometido nas formas que perdemos.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 19 de março de 2010

Migalhas que ficaram VI




AS CONTAS


Durante a noite caiu neve. E tanta foi que embranqueceram outeiros e vales, arroteias de pão e globas de mato, ramaria das árvores e telhados das casas; e tão fria que gelou as águas das fontes e dos arroios, e endureceu o chão dos caminhos e o trilho das veredas.
Dos beirais das casas e dos ramos das árvores pendiam, como brilhantes estalactites, esguios e cristalinos fios de gelo em que o frio transformou, no espaço álgido e baço, pequenas gotas de orvalho na sua queda para o solo.
Das chaminés das casas saiam espessos rolos de fumo, ora escuros, como escuras nuvens borrascosas, ora farrapagem diáfana e branca, como brancos flocos de algodão que o vento esfarrapa e rasga no espaço. Fumo que se evola das fogueiras de labaredas altas a lambusarem os testos das panelas e as pedras dos lares e a irradiarem, ao redor, calor e alegria para o conforto dos que, à sua volta, se reuniam enquanto o sol não derretesse a neve que os prendia em casa.
=
=
Três vultos embuçados se viam na paisagem plúmbea dessa manhã fria - os irmãos mais velhos de um agregado familiar. Iam a caminho da escola. Carapuças de lã enfiadas na cabeça até às orelhas, golas dos casacos levantadas e mãos enterradas nos bolsos, que não fossem elas empequecer.
Um chasco de penas erriçadas pousado num galho seco dum pinheiro novo pipilava transido de frio.
Além um melro, de bico amarelo, "negro, vibrante e luzidio", revolvia afincadamente com vigorosas bicadas e frenética canseira as folhas caídas das árvores, amontoadas e podres, para catar debaixo delas e pôr ao léu, os vermes e larvas que gulosamente ia devorando.
Atrás dos pequenos estudantes vinha um sacerdote. Alto e desempenado, depressa os alcançou a passos largos e destros. Era o pároco duma freguesia das redondezas que ia tomar parte na celebração de uns ofícios na igreja paroquial do local da escola. Levava no ombro direito a batina dobrada com o forro para fora e a fímbria para trás, e, no braço do mesmo lado, uma saquinha de veludo preto com borlas redondas da mesma côr nos cantos do fundo e nos cordões dos fechos. Para a identificar e não perder, as iniciais do seu nome numa das faces, bordadas com fios de lã verde, a ponto de cruz, garantiam a sua posse.
Transportava nela os paramentos próprios para os actos litúrgicos em que ia colaborar.
Rendia-lhe o andar. E, como os jovens interlocutores o queriam acompanhar para ouvirem e manterem a conversação que com eles entabolou, tinham de ir atrás dele, a maior parte do tempo, às corredourinhas, a rapelhar.
Quis saber das classes que frequentavam; inquiriu das dificuldades que lhes surgiam; e, abordando as disciplinas mais difíceis, ouvia, sugeria e comentava. Por fim, na oportunidade da conversa, enunciou deste modo as dificuldades da aprendizagem das quatro operações de aritmética:

-As de somar
fazem-se a cantar.

- E as de diminuir
fazem-se a rir

-E as de multiplicar? - inquiriram os moços interessados

- As de multiplicar
fazem-se a chorar.

- E então as de dividir?... - continuaram eles.

-Então com as de dividir
é largar os socos e botar a fugir...

E o melro que, no entretanto, acabara o seu lauto almoço,

(...)"lá foi, vibrante e jovial
a soltar por entre o arvoredo
lindas risadas de cristal"(...)



Rates, anos 60 
Joaquim D. Cancela

(citação de "O melro" G.J.)

.
 

terça-feira, 16 de março de 2010

No dia dos anos da Graça

A minha homenagem


TARDE

O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas.
.
Sophia de Melo Breyner Andresen

segunda-feira, 15 de março de 2010

Jean Ferrat


Morreu Jean Ferrat a 13 de Março passado, com 79 anos. Filho de judeu russo emigrado, viu com 11 anos , seu Pai ser deportado pelos nazis para Auschwitz-Birkenau onde morreu.
É salvo por militantes comunistas, tendo sido sempre simpatizante do Partido, mas nunca fez parte dele. Delimitou-se sempre dos métodos soviéticos, e as suas canções denunciaram sempre isso mesmo. Com "Camarade" denuncia e reprova a invasão de Praga pela Rússia. Com "Nuits & Broulliard" condena os horrores da deportação durante a guerra. Uma e outra, foram proibidas de passarem nas Emissoras.
Com ele, desaparece o último dos compositores e intérpretes, da era da canção francesa de intervenção.

segunda-feira, 8 de março de 2010

DOURO


fotos de Mariano Pires

Escolher o Douro entre as sete maravilhas naturais de Portugal, é por assim dizer, uma obrigação

terça-feira, 2 de março de 2010

Sinais de Fogo

Romance único de Jorge de Sena, parcela de um projecto romanesco de grande dimensão cuja designação genérica seria MONTE CATIVO, objectivando o recorte de uma geração nascida nos finais dos anos 10 do séculoXX, SINAIS DE FOGO, de uma erudição e de um rigor literário inexcedíveis, fixa um olhar sobre o ano de 1936 português, tendo como pano de fundo o início da Guerra Civil de Espanha.
Recentemente revisto e em nova edição.

XIV cap.

(...)Don Juan quebrou o constrangimento, dizendo: - Porque o amor é cego, e só quando se satisfaz é que vê...até à primeira ocasião.
Mas meu Tio mergulhara em melancolia: - Não, não é. O amor não é cego, nós é que somos cegos para ele. A gente olha e não vê. E, quando vê, já passou a ocasião. Tanto faz que seja, porque tivemos alguém que julgávamos que queríamos, como porque não tivemos quem só depois percebemos que afinal a gente queria. E o pior ainda não é isso. O pior é a gente, mais tarde, saber que nos era indiferente alguém que julgámos desejar muito. Vejam o que aconteceu comigo ... Eu não fiz a carreira que sempre tinha sonhado. E desespero-me com isso. Mas, se tivesse feito, se calhar desesperava-me com ela, porque não tenho jeito nenhum para a vida militar que era a minha. Eu estive prisioneiro na Alemanha e fugi para a Holanda, com uma mulher que me deu todo o amor de que era capaz. Também eu lho dei. E depois, quando saí da Holanda para voltar, foi muito menos para voltar que para fugir dela. Nessa altura, conheci esta - e fez de cabeça um movimento que indicava a minha tia - que de resto eu já conhecia. E casei com ela. E gostava dela. Mas sempre ela me lembrava a outra. Das duas uma, ou casei com ela porque ela me lembrava a outra e por isso mesmo, de cada vez que a olhava, me apetecia tornar a escapar, ou casei com ela para escapar da outra, e acabei não escapando de nenhuma. Há ainda uma outra hipótese. É eu ter casado com esta pela vaidade de casar com uma das filhas da Madame Simões, da rica e celebrada Madame Simões, quando me queria convencer e a toda a gente de que a minha vida não tinha acabado, a minha carreira não estava encerrada. Porque eu era um inválido de guerra. Mas o mais certo é que, desconfiado de que não tinha carreira nenhuma, julguei que casava com o dinheiro dela. Depois nasceu o meu filho... Eu já lhe contei do meu filho, não contei? (...)


XLIII cap.

Acordei com uma límpida claridade a entrar pelas janelas cujas portadas eu me esquecera de fechar. Mas o que me acordara era um burburinho que eu ouvia lá dentro, agitação, falácia pela casa adiante. Era cedo ainda, oito horas. Mas sentia-me repousado, bem disposto, e reagi com curiosidade. Que seria? Levantei-me, fui ver. Minha Mãe andava de um lado para o outro no corredor, dava ordens à criada, que fosse à mercearia já, já, antes que ela fechasse, se é que tinha aberto, trouxesse batatas, bacalhau, arroz, e sal, que não se esquecesse do sal. A criada aprestava-se para sair, voltava atrás para acrescentar na memória mais uma recomendação, mais um nome na lista. Meu pai só dizia que era preciso calma, não se ouvia nada, seria boato, era preciso saber primeiro o que acontecera. Foi o que perguntei. A resposta veio dramática da minha mãe: o padeiro trouxera a novidade, tinha dito que houvera uma revolução. Meu pai comentou que, se tinha havido, já não havia, visto que tudo estava sossegado. A criada parecia espavorida com a ideia de uma revolução, mas ansiosa por ir à rua, a pretexto de mercearias, para saber do que se tratava. Minha mãe, às observações de meu pai, respondia: - Já não se lembrava do que uma revolução era? Não se lembrava de como tudo fechava por causa dos assaltos às lojas? E daquela vez que tinham ficado dias sem ter onde comprar nada? Ele respondia que, ora essa, dessa vez, com tiros e tudo na rua, o merceeiro nunca deixara de mandar o pobre do marçano a saber se era preciso alguma coisa, a trazer as compras.
- Mas que foi que o padeiro disse?
- Que houve uma revolução esta noite.
- Aonde?
- Aqui em Lisboa! - e minha mãe acrescentou: - Eu estava mesmo à espera que isso acontecesse qualquer dia. Já estavam cansados de paz e sossego, é o que é. E agora vai ser o mesmo inferno de dantes.
- Mas não sabemos o que aconteceu realmente, e está tudo tão calmo, não se ouve nada, será um boato. Ou a coisa não foi séria - dizia o meu pai.
- Claro que foi séria! Essas coisas são sempre muito sérias. Daqui de casa não sai ninguém - e minha mãe fitava-me e a meu pai - que eu não quero ficar numa aflição, e sozinha aqui, sem um homem em casa. Deus me livre.
- Tu estás doida? Então não hei-de ir para o emprego?
A criada, à porta, hesitava. Minha mãe dardejou uma ordem:
- Vá lá à mercearia, e de caminho pergunte o que é que houve
- e ela saiu.
Meu pai disse: - O melhor é eu telefonar para o escritório, a saber o que se passou, o que é que há.
O telefone naquele tempo, na maior parte das casas, era um imponente bibelô preto que ninguém usava senão em emergências extremas. O telefone só tocava, ou só era levantado do gancho, em correlação necessária com momentosos eventos.
- Isso, telefona, pergunta para lá - apoiou minha mãe, e em procissão seguimos atrás dele em direcção ao objecto, no fundo do corredor, na esquina para a sala de jantar, sobre uma peanha de que pendia um napperon branco que mais fazia ressaltar a nobre dignidade do monstrinho negro.
Quando meu pai falou, era evidente que tudo corria normalmente no escritório, apesar da excitação que se sentia que o telefone estava a transmitir e que ele pontuava de movimentos afirmativos de cabeça e de alguns ahs intercalados. Pousando o auscultador no gancho, meu pai deixou correr uns instantes, saboreando a solenidade da expectativa, e depois resumiu o que ouvira: - Parece que a Armada se revoltou, e alguns navios iam pelo rio abaixo, e os fortes meteram-nos no fundo. Mas não aconteceu mais nada.O governo domina a situação, já acabou tudo.
- Ora... - comentou minha mãe - isso é sempre o que os governos dizem. O melhor é esperar até à manhã, e, se não houver tiroteio entretanto, é porque então é verdade.
Não me contive: - Mas também houve este tiroteio agora, e não se ouviu nada cá em casa...
Minha mãe ia responder-me asperamente quando a criada voltou afogueada de notícias: - Ai minha senhora, lá na mercearia estava um ror de gente (Vêem? - triunfou minha mãe para meu pai) e diz que houve uma revolução e que já acabou mas não se sabe se acabou ou não porque pode rebentar outra coisa e que foram uns navios da guerra (- De guerra - emendou minha mãe) que desataram aos tiros e mataram os oficiais todos e depois foram ao fundo porque o governo mandou que fossem metidos ao fundo e os fortes foi que os meteram ao fundo e agora não se sabe mais nada e parece que está tudo quieto. Minha senhora, as batatas subiram, e o bacalhau e o arroz também, e o senhor Joaquim(era o dono da mercearia) diz que podem faltar e por isso é mais caro.
- Estamos como dantes - comentou minha mãe - sempre que lhe cheirava a revolução esse homem subia o preço de tudo. É mau sinal.
- Vou mas é para o escritório, que já estou atrasado - disse o meu pai.
- Não, não vais,que eu não quero ficar sozinha numa inquietação destas.
- O rapaz está aí.
- Quando é que ele parou em casa alguma vez? Assim que estiver arranjado, sai-me pela porta fora, que não há quem o agarre.
- Bem, até logo. Depois eu telefono - e foi saindo com minha mãe a clamar no patamar da escada: uma falta de juizo e de prudência, e ela abandonada à sua aflição.
Fechada a porta, minha mãe voltou-se para mim: - Tu tens alguma coisa que ver com isto? - e a criada fitava-me com ar pasmado.(...)
.
in Sinais de Fogo
Jorge de Sena

segunda-feira, 1 de março de 2010

Quadras e Ditos II

Colecção obtida em azulejos, pratos, anúncios, etiquetas, recolhida por meu Pai

Tulipas negras e brancas com amores-perfeitos num jardim de Gent


As estrelas do Céu correm,
Correm todas numa linha
Assim corressem os beijos
Da tua boca para a minha

Quem me dera ser a lágrima
Para em teus olhos nascer;
Resvalar por tuas faces,
Vir em teus lábios morrer.

Quem disser que o preto é triste
Hei-de dizer-lhe que mente;
Meu amor tem olhos pretos
Alegres p'ra toda a gente.


Com Peugeot na estrada
A viagem não custa nada.

Depois do almoço ou jantar
Só "Evic" deve fumar.

Você perdeu o comboio?
E perdeu também o dia.
Se você usasse um OLMA,
Nunca mais o perderia.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

viagens

catedral de Antuérpia(pormenor)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Contrastes


O inverno em Sta Maria do Bouro






terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Migalhas que ficaram V


aldeia portuguesa



O Tio Bento das Sacas


A sua morada era uma dependência devoluta duma casa situada na margem da estrada, no centro da povoação. O seu ofício era o de fazer paus para socos. Convivia com os transeuntes que lhe passavam ao rés-da porta, ali negociava com os seus fornecedores, e com todos cavaqueava, quer nas horas de folga quer nas de trabalho.
Mas vivia só. E era gago; sobretudo quando era assaltado por emoções fortes.
Na habitação que ocupava tinha todo o seu mundo. No meio dela situava-se o cepo sobre que trabalhava. Ao lado, o lar onde cozinhava as refeições, a mesa onde comia, e a um canto, a cama onde dormia.
E ao mesmo tempo que trabalhava, ia fazendo a comida.
.
Sentado em frente do cepo e rodeado de cavacos e aparas de amieiro que se amontoam à sua volta, ele vai debouçando com a enxó o taco de madeira que quer transformar em pau de tamanco. A enxó desbasta cavaco a cavaco, corta, escava, afunda, e começam a aparecer os contornos da obra que se pretende obter. Agora é o tacão a sobressair. Uns golpes transversais e longitudinais vibrados com mais energia, e ele surge, destaca-se e afila-se. Depois vem o formão afeiçoar as formas, delinear as curvas, abrir sulcos.
E, antes de entrar em nova fase de trabalhos, examina a obra, vira-a e revira-a em todas as direcções.
Então, apoiando o cabo do formão na axila do braço direito, com a mão do mesmo lado empunha a lâmina. O formão começa a desfiar aparas. Impelido pela força que sobre ele exerce o ombro direito, ele vai escavando e dando a forma desejada ao pau que a mão esquerda segura e coloca na posição conveniente.
.
O pensamento de Ti-Bento assim preso do trabalho que está a realizar, não se dissocia contudo, da lembrança do seu pequeno amigo que com ele conversava, o distraía, e lhe suavizava a monotonia de horas inteiras a fazer paus para tamancos.
- O João foi p'rá Póvoa. Foi p'ra caixeiro.
Ti-Bento ouviu em silêncio a notícia e, sentiu logo o travor amargo que ela lhe causara.
O formão continuava a rebaixar e a abrir sulcos; as aparas que o gume ia desprendendo saiam agora mais finas, leves, como papel. Caídas no lume, eram uma lambedela das chamas. O tacão estava pronto. A base para o metatarso e dedos estava a afeiçoar-se e a destacar-se. Seguir-se-ia depois a curva enfranque para a arcada plantar. As aparas continuavam a desfiar-se diante do formão como pétalas de camélias desbotadas.
O panelo, esse, lá continuava a ferver. De quando em quando uma baforada de vapor levantava o testo e expandia-se no espaço.
Ti-Bento quedou-se a contemplar, absorto, o movimento de sobe e desce do testo e meditava; não como o pequeno Papin na força expansiva e elasticidade dos gases, mas na ausência do João. E, de braços cruzados sobre o regaço detendo na mão esquerda o pau novo do tamanco e, na direita, o formão com que o cavacara, desabafou num saudoso enleio:
-Oo ... ra basta, que ... o João ... foi p'ra taixeiro!
.

De Ti-Bento o coração estava decíduo. Estigmatizara-o a morte da mulher. Ferira-o. A solidão apoderara-se dele e privara-o do afago duma carícia que ameniza e consola, da frescura dum sorriso que suaviza e alegra, do calor duma palavra que conforta e anima, da magia dum olhar que enternece e encanta.
Para ele a vida consistia apenas em fazer paus de tamancos e vendê-los no mercado, às quartas - feiras, em Famalicão. Nesses dias para lá seguia com a mercadoria, montava a tripeça e atendia os fregueses.
Mas, no meio destas sombras que desfiguravam e escureciam a sua existência, dealbou uma luz, esperançosa e redentora. O seu espírito acarinhou-a e recolheu-a como uma fagueira esperança.
A senhora Ana Parranda que o marido abandonara há muitos anos, também ia à feira vender carduço. Eram companheiros de viagem e de feira. Para cá e para lá. Conversavam. Como ele, ela sentia-se só, rodeada de tristezas e amarguras. Como ele, ela sofria a friura da existência solitária. E da convivência entre os dois, irrompeu em labaredas um clarão que os estonteou e seduziu. Poderiam, então casar!...
E Ti-Bento, enamorado com essa sedutora ideia, tentou alimentar uma ilusória esperança. Tão ilusória, quão efémera!...
- Mas ela é casada, Ti-Bento.
Ti-Bento sacou o lenço tabaqueiro, para se assoar e, tirou do bolso do colete a caixa do rapé. Com ela aberta na mão esquerda e os dedos polegar e indicador da direita dentro dela, para tirar a pitada, fixou a nesga de céu azul por baixo da padieira da porta e, num radioso anseio, como solução segura:
-Não ... que agora, ... há o debotche ! ...(1)

Rates,Junho de 1968
Joaquim D. Cancela
(1) divórcio

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Quadras e Ditos I

Colecção obtida em azulejos, pratos, anúncios, etiquetas, recolhida por meu Pai

"Comer bem feito / Faz bom proveito"

A juventude treinada
Que vai à competição
Bebe Casa da Calçada
Se quer voltar Campeão

Que bom efeito que mete,
Com uma carne mal passada,
O precioso clarete
Da tal Çasa da Calçada

À conversa adjectivada
Não me prendo... não me iludo!
Disse Casa da Calçada?
Disse vinho e disse tudo.

P´ra conquistar um negócio
Ofereça uma almoçarada;
Mas não esqueça o tal sócio
-Vinho Casa da Calçada.

Nesta noite, S. João
Tem uma fonte encantada,
Onde todos beberão
Vinho Casa da Calçada

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Não se perdeu nenhuma coisa em mim

Casa de Aquilino(pormenor)



Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
.
Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Rosto nu

joom gallery

Rosto nu na luz directa
Rosto suspenso, despido, permeável,
Osmose lenta.
Boca entreaberta como se bebesse,
Cabeça atenta.
Rosto desfeito,
Rosto sem recusa onde nada se defende,
Rosto que se dá na angustia do pedido,
Rosto que as vozes atravessam.
Rosto derivando lentamente,
Pressentimento que os laranjais segredam,
Rosto abandonado e transparente
Que as negras noites de amor em si recebem.
Longos raios de frio correm sobre o mar
Em silêncio ergueram-se as paisagens
e eu toco a solidão com uma pedra.
Rosto perdido
Que amargos ventos de secura em si sepultam
E que as ondas do mar puríssimas lamentam.
.
Sophia de Melo Breyner Andresen

domingo, 17 de janeiro de 2010

Desencontro

(Coimbra- quebra costas)

Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra
.


Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Noite de Núpcias


Enquanto despia o fraque
junto ao leito de noivado,
escapuliu-se-lhe um traque
de timbre aclarinetado...

A noiva olhou-o de lado,
e pôs-se, com ar basbaque,
a remirar o bordado
das botinas de duraque...

Houve após esse momento,
naquela noite de gala
um duplo constrangimento.

E o noivo disse-lhe então:
"Oh filha, cu que não fala
é cu sem opinião..."
.
(Inédito,
manuscrito da biblioteca
de Cardoso Marta)
Seleccionado por Natália Correia

domingo, 10 de janeiro de 2010

MAR SONORO

O mar em Matosinhos

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim

.
Sophia de Melo Breyner e Andresen

em Dia do Mar

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Evadir-me, esquecer-me

(recorte de jardim em Gant)

Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Albert Camus

O Estranjeiro
(extracto)
(...)Maria veio buscar-me à noite e perguntou-me se eu queria casar com ela. Respondi que tanto me fazia, mas se de facto ela queria casar, estava bem. Quis então saber se eu a amava. Respondi, como aliás respondera já uma vez, que isso nada queria dizer, mas que talvez a não amasse."Nesse caso, porquê casar comigo?", disse ela. Respondi que isso não tinha importância e que, se ela quisesse, nos podíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu contentava-me em dizer que sim. Maria observou então que o casamento era uma coisa muito séria. Respondi:"Não". Maria calou-se durante uns instantes e olhou-me em silêncio. Depois, falou. Queria simplesmente saber se, vinda de outra mulher com a qual estivesse relacionado do mesmo modo, eu teria aceitado uma proposta semelhante. Respondi: "Possivelmente". Perguntou então de si para si se gostaria de mim, mas sobre esse ponto, como poderia eu saber alguma coisa? Depois de mais uns instantes de silêncio, murmurou que era uma pessoa estranha, que gostava de mim decerto por isso mesmo, mas que um dia, pelos mesmos motivos, era capaz de passar aos sentimentos contrários. Como eu me calasse, por não ter nada a acrescentar, tomou-me o braço a sorrir e declarou que queria casar comigo. Respondi que sim, logo que ela quisesse. Falei-lhe então na proposta do patrão e Maria disse-me que gostaria de conhecer Paris. Contei-lhe que lá vivera durante algum tempo e ela perguntou-me como era a cidade. Respondi: "É suja. Há pombas e pátios escuros. As pessoas têm a pele muito branca".
Depois passeámos, escolhendo as grandes ruas.
As mulheres eram bonitas e perguntei a Maria se ela achava o mesmo. Disse que sim, e que me compreendia. Depois calámo-nos. Queria no entanto que ela ficasse comigo e disse-lhe que poderíamos jantar juntos no Celeste. Maria replicou que gostava muito, mas que tinha que fazer. Estávamos ao pé de minha casa e eu disse-lhe adeus. Ela olhou para mim: "Não queres saber o que é que tenho que fazer?" Eu queria, mas não me lembrara de lho perguntar e era por isso que estava com um ar de censura. Diante do meu ar embaraçado, voltou então a rir e, para me estender a boca, teve para mim um movimento de todo o corpo.(...)

Sartre, sobre este livro, disse:(...) "O estrangeiro que ele quer pintar é justamente um desses terríveis inocentes que constituem o escândalo de uma sociedade porque lhe não aceitam as regras do jogo. Vive entre os estrangeiros, mas para eles é também um estrangeiro. Por isso alguns hão-de amá-lo, como Maria, sua amante, que lhe dá importância " porque é bizarro"; e outras detesta-lo-ão por isso, como aquela multidão do tribunal, cujo ódio ele sente de súbito subir contra si. E nós próprios que, abrindo o livro, ainda não estamos familiarizados com o sentimento do absurdo, procuraríamos em vão julgá-lo segundo as nossas normas habituais: ele é um estrangeiro também para nós. Desse modo, o choque que o leitor sentiu ao abrir o livro, quando leu: "Pensei que passara mais um domingo, que a Mãe já fora a enterrar, que ia regressar ao meu trabalho e que, no fim de contas, continuava tudo na mesma", era voluntário: é o resultado do primeiro encontro do leitor com o absurdo. Mas o leitor esperava talvez que, levando por diante a leitura da obra, veria dissipar-se o seu mal estar, que tudo ficaria a pouco e pouco esclarecido, baseado em razão, explicado. A sua esperança ficou desiludida: O Estrangeiro não é um livro que explica: o homem absurdo não explica, descreve; não é também um livro que prove. Camus sòmente propõe e não se inquieta com justificar o que, por princípio, é injustificável. (...)

Estes dois pequenos extractos, são simultâneamente uma pequenina homenagem ao grande escritor que é Camus, mas também um espevitar de curiosidades àqueles que por uma qualquer razão o conheçam menos.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Tarde

Matozinhos, hoje

Tarde lluviosa en gris cansado,
y sigue el caminar.
Los árboles marchitos.
Mi cuarto, solitário.
Y los retratos viejos
y el libro sin cortar...

Chorrea la tristeza por los muebles
y por mi alma.
Quizá,
no tenga para mi Naturaleza
el pecho de cristal.

Y me duele la carne del corazón
y la carne del alma.
Y al hablar,
se quedan mis palabras en el aire
como corchos sobre agua.

Solo por tus ojos
sufro yo este mal,
tristezas de antaño
y las que vendrán.

Tarde lluviosa en gris cansado,
y sigue el caminar .
.

Garcia Lorca,1919