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quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Deambulações Oblíquas




É porque nos decepcionamos
que procuramos a perfeição
O símbolo é o arco que abarca a totalidade
e por ele nós podemos alcançar
o que está do outro lado dela
A transcendência do que não vemos
a outra face do todo
é uma perspectiva simbólica
inerente à imediata presença
da face que estamos vendo
Assim o que vemos e o que não vemos
no objecto que estamos olhando
é a coisa em si que o animal não apreende
Não somos nunca o que está diante e separado
o que representa e o representado
em separada oposição
de ideia e objecto
de consciência e corpo
O que em nós está separado
em espírito e em corpo
está ao mesmo tempo unido
numa tensão oblíqua
que nos insere no mundo
E como seres simbólicos
e como seres-no-mundo
somos o que já somos
somos o que ainda não somos

António Ramos Rosa, in " Deambulações Oblíquas",
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domingo, 12 de março de 2017

Numa Folha, Leve e Livre







Quero dormir na água das palavras
que amam o silêncio
e a lentidão da luz
que é o fulgor de uma evidência indecifrável

Quero ser a concha do ingénuo sossego
de uma flor branca
como o monótono murmúrio
de uma respiração solar

Quero ser o ouvido de veludo
de um insecto azul
e quero beber a linfa do olvido
numa boca de argila
para sentir a monotonia ardente
da garganta da terra


 António Ramos Rosa, Numa Folha, Leve e Livre (2013)
Fotografia de Manuel João Ferreira Múrias

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quarta-feira, 25 de setembro de 2013

LUTO PELO POETA MEDIADOR DA LUZ

  1. O luto voltou a abater-se sobre Maria Teresa Horta. Esta manhã acompanhou à sepultura, no Cemitério dos Prazeres, o poeta António Ramos Rosa. É um luto profundo, que nasce das raízes da poesia de MTH. Foi, de facto, António Ramos Rosa o poeta a quem a jovem Teresa confiou os seus primeiros poemas, com pedido de parecer. Fê-lo por correio, em fins de 1959, num sobrescrito registado e endereçado de Lisboa «ao poeta António Ramos Rosa – Faro». Três dias depois, um telefonema de Ramos Rosa louvava o talento da jovem poetisa e estimulava-a a publicar a poesia em livro, propondo-se assegurar a respectiva edição. Assim nasceu, em Maio de 1960, «Espelho Inicial». Mais tarde, em 1987, no seu livro de estudos sobre a poesia portuguesa contemporânea «Incisões Oblíquas», António Ramos Rosa salienta «a subversão do desejo» na poética de Maria Teresa Horta. Segundo o autor, para MTH «é a própria existência que emerge na sua palavra e nela se apreende e se repercute. Seja directa, seja metafórica, a sua linguagem tem a ardência vital do corpo e a sua violência sensual é, em toda a sua irracionalidade, libertadora e subversiva». A relação de amizade e admiração dos dois poetas manteve-se ao longo dos anos, tendo Teresa garantido o exclusivo, remunerado (o que não era, nem é, vulgar), da publicação de poemas de António Ramos Rosa no suplemento «Literatura & Arte» de «A Capital». E, em Outubro de 2002, a pedido do poeta, Maria Teresa Horta, lança, na Livraria Bulhosa, ao Campo Grande, o seu livro «A Rosa Intacta» (ver foto abaixo). Esta tarde, no regresso do adeus ao poeta, MTH escreveu o seguinte poema:

MEDIADOR DA LUZ

Para mim sempre foste
o poeta
mediador da luz

Transfigurando a realidade
em utopia, na sua triagem
de versos e palavras

Em busca da metamorfose
da claridade,
nas fundações da linguagem

Seduzindo a ilusão
pelo voo da asa
num abismo profundo

Aquele que toma o sonho
e o conduz,
mudando cada poema

em mundo


Maria Teresa Horta, 25 Setembro 2013
 Texto e foto retirados da cronologia de MTH

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Na morte de António Ramos Rosa


Lux Aeterna

Homenagem



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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Na morte de António Ramos Rosa

O TEMPO CONCRETO

O tempo duro
com estas unhas de pedra
este hálito podre
de órgãos esfomeados
estas quatro paredes de cinza e álcool
este rio negro correndo nas noites como um
[esgoto
O tempo magro
em que minhas mãos divididas
nitidamente separadas e caídas
ao longo dum corpo de cansaço
pedem o precipício a hecatombe clara
o acontecimento decisivo

O tempo fecundo
dos sonhos embrulhados repetidos como um hálito
[de febres
repassadas no travesseiro igual das noites e dos
[dias
das ruas agrestes e pequenas da mágoa
familiar e precisa como uma esmola certa

O tempo escuro
da peste consentida do vício proclamado
da sede amarfanhada pelas mãos dos amigos
da fome concreta dum sonho proibido
e do sabor amargo dum remorso invisível

O tempo ausente
dos olhos dum desejo de claras cidades
em que acenamos perdidos às soluções erguidas
com vozes bem distintas de cadáveres opressores
com gritos sufocados de problemas supostos

O tempo presente
das circunstâncias ferozes que erguem muros
[reais
dos fantasmas de carne que nos apertam as mãos
das anedotas contadas num outro mundo de cafés
e das vidas dos outros sempre fracassadas

O tempo dos sonhos
sem coragem para poder vivê-los
com muralhas de mortos que não querem morrer
com razões de mais para poder viver
com uma força tão grande que temos de abafar
no fragor dos versos disfarçados

O tempo implacável
em que jurámos de pé viver até ao fim
maiores dos que nós ser todo o grito nu
pureza conquistada no seio da vida impura
um raio de sol de sangue na face devastada

O tempo das palavras
numa circulação sombria como um poço
de ecos incontrolados
de timbres inesperados
como moedas de sangue cunhadas numa noite
demasiado curta e com luar demais

O tempo impessoal
em que fingimos ter um destino qualquer
para que nos conheçam os amigos forçados
para que nós próprios nos sintamos humanos
e estes fardo de trevas esta dor sem limites
a possamos levar numa mala portátil

O tempo do silêncio
em que o riso postiço dos fregueses da vida
finge ignorá-lo enquanto soluçamos
de raiva de razão reprimida revolta
e os senhores do bom senso passeiam divertidos

O tempo da razão
(e não da fantasia)
em que os versos são soldados comprimidos
que guardam as armas dentro do coração
que rasgam os seus pulsos para fazer do sangue
a tinta de escrever duma nova canção

António Ramos Rosa, in O GRITO CLARO, Colecção "A Palavra", n.º 1, Faro - 1958


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