domingo, 17 de janeiro de 2010

Desencontro

(Coimbra- quebra costas)

Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra
.


Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Noite de Núpcias


Enquanto despia o fraque
junto ao leito de noivado,
escapuliu-se-lhe um traque
de timbre aclarinetado...

A noiva olhou-o de lado,
e pôs-se, com ar basbaque,
a remirar o bordado
das botinas de duraque...

Houve após esse momento,
naquela noite de gala
um duplo constrangimento.

E o noivo disse-lhe então:
"Oh filha, cu que não fala
é cu sem opinião..."
.
(Inédito,
manuscrito da biblioteca
de Cardoso Marta)
Seleccionado por Natália Correia

domingo, 10 de janeiro de 2010

MAR SONORO

O mar em Matosinhos

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim

.
Sophia de Melo Breyner e Andresen

em Dia do Mar

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Evadir-me, esquecer-me

(recorte de jardim em Gant)

Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Albert Camus

O Estranjeiro
(extracto)
(...)Maria veio buscar-me à noite e perguntou-me se eu queria casar com ela. Respondi que tanto me fazia, mas se de facto ela queria casar, estava bem. Quis então saber se eu a amava. Respondi, como aliás respondera já uma vez, que isso nada queria dizer, mas que talvez a não amasse."Nesse caso, porquê casar comigo?", disse ela. Respondi que isso não tinha importância e que, se ela quisesse, nos podíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu contentava-me em dizer que sim. Maria observou então que o casamento era uma coisa muito séria. Respondi:"Não". Maria calou-se durante uns instantes e olhou-me em silêncio. Depois, falou. Queria simplesmente saber se, vinda de outra mulher com a qual estivesse relacionado do mesmo modo, eu teria aceitado uma proposta semelhante. Respondi: "Possivelmente". Perguntou então de si para si se gostaria de mim, mas sobre esse ponto, como poderia eu saber alguma coisa? Depois de mais uns instantes de silêncio, murmurou que era uma pessoa estranha, que gostava de mim decerto por isso mesmo, mas que um dia, pelos mesmos motivos, era capaz de passar aos sentimentos contrários. Como eu me calasse, por não ter nada a acrescentar, tomou-me o braço a sorrir e declarou que queria casar comigo. Respondi que sim, logo que ela quisesse. Falei-lhe então na proposta do patrão e Maria disse-me que gostaria de conhecer Paris. Contei-lhe que lá vivera durante algum tempo e ela perguntou-me como era a cidade. Respondi: "É suja. Há pombas e pátios escuros. As pessoas têm a pele muito branca".
Depois passeámos, escolhendo as grandes ruas.
As mulheres eram bonitas e perguntei a Maria se ela achava o mesmo. Disse que sim, e que me compreendia. Depois calámo-nos. Queria no entanto que ela ficasse comigo e disse-lhe que poderíamos jantar juntos no Celeste. Maria replicou que gostava muito, mas que tinha que fazer. Estávamos ao pé de minha casa e eu disse-lhe adeus. Ela olhou para mim: "Não queres saber o que é que tenho que fazer?" Eu queria, mas não me lembrara de lho perguntar e era por isso que estava com um ar de censura. Diante do meu ar embaraçado, voltou então a rir e, para me estender a boca, teve para mim um movimento de todo o corpo.(...)

Sartre, sobre este livro, disse:(...) "O estrangeiro que ele quer pintar é justamente um desses terríveis inocentes que constituem o escândalo de uma sociedade porque lhe não aceitam as regras do jogo. Vive entre os estrangeiros, mas para eles é também um estrangeiro. Por isso alguns hão-de amá-lo, como Maria, sua amante, que lhe dá importância " porque é bizarro"; e outras detesta-lo-ão por isso, como aquela multidão do tribunal, cujo ódio ele sente de súbito subir contra si. E nós próprios que, abrindo o livro, ainda não estamos familiarizados com o sentimento do absurdo, procuraríamos em vão julgá-lo segundo as nossas normas habituais: ele é um estrangeiro também para nós. Desse modo, o choque que o leitor sentiu ao abrir o livro, quando leu: "Pensei que passara mais um domingo, que a Mãe já fora a enterrar, que ia regressar ao meu trabalho e que, no fim de contas, continuava tudo na mesma", era voluntário: é o resultado do primeiro encontro do leitor com o absurdo. Mas o leitor esperava talvez que, levando por diante a leitura da obra, veria dissipar-se o seu mal estar, que tudo ficaria a pouco e pouco esclarecido, baseado em razão, explicado. A sua esperança ficou desiludida: O Estrangeiro não é um livro que explica: o homem absurdo não explica, descreve; não é também um livro que prove. Camus sòmente propõe e não se inquieta com justificar o que, por princípio, é injustificável. (...)

Estes dois pequenos extractos, são simultâneamente uma pequenina homenagem ao grande escritor que é Camus, mas também um espevitar de curiosidades àqueles que por uma qualquer razão o conheçam menos.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Tarde

Matozinhos, hoje

Tarde lluviosa en gris cansado,
y sigue el caminar.
Los árboles marchitos.
Mi cuarto, solitário.
Y los retratos viejos
y el libro sin cortar...

Chorrea la tristeza por los muebles
y por mi alma.
Quizá,
no tenga para mi Naturaleza
el pecho de cristal.

Y me duele la carne del corazón
y la carne del alma.
Y al hablar,
se quedan mis palabras en el aire
como corchos sobre agua.

Solo por tus ojos
sufro yo este mal,
tristezas de antaño
y las que vendrán.

Tarde lluviosa en gris cansado,
y sigue el caminar .
.

Garcia Lorca,1919