quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Migalhas que ficaram III


fotografia de Mariano Pires


Ti-Zé da Delfina


A Sra. Delfina exercia a profissão de recoveira. Todos os dias lá ia ela pelo caminho de Coucelos, abaixo, para fugir às calmarias de sol das estradas e encurtar distancias, de canastra escurecida pelo uso, na cabeça, até à Póvoa de Varzim para trazer e levar recados e encomendas para quem precisasse dos seus préstimos. E muitos pretendentes eram eles, por não haver na freguesia loja de coisas, das principais coisas necessárias à economia doméstica. Era uma onça de chá para este, um arrátel de sabão para aquele, um quartilho de azeite para outro... Recados para lá, recados para cá.O meu Tio materno, José Ferreira Júnior, era o Professor Oficial (Professor Régio como dantes se dizia). Todos os dias só desjejuava, antes das aulas, bebendo chá, infuso, acompanhado com finas fatias de molete. Por isso a minha Tia Francisca que o era por duplo título – afim e consanguíneo – havia que ter sempre provida dessa especiaria a latinha de o guardar. Esse encargo se tornava leve por ter ali ao pé, mesmo em frente e à mão de semear, a pessoa que acertadamente lhe resolvia o problema. Era só chegar à janela e chamar, porque a frente da residência escolar dava, depois do caminho, para as traseiras da casa da vizinha.-“ Ó Delfina...Delfina, amanhã traz-me uma onça de chá. Os pequenos vão aí levar-te o dinheiro”.E a Sra. Delfina que ouvia o recado e o arruído das crianças em tropel pelo quintal abaixo, assomava à varanda de pau que para ali dava e recebia delas o dinheiro da encomenda.O seu homem, o sr. Oliveira, ocupava a sua actividade num modesto negócio de madeiras que amanhava por suas mãos. Comprava uma árvore, carvalho, sobreiro, castanheiro, cerejeira... Tirava dela tudo o que pudesse ser utilizado na confecção ou reparação de alfaias agrícolas: umas cambas ou uns miúlos para umas rodas, um eixo para um rodeiro, uma cheda para um carro, umas relhas para um arado, um tornadouro para uma grade, umas aduelas para um pipo, uma tábua para uma escudela... Tudo ali se encontrava. O que não desse obra, dava lenha para vender; e da miuçalha enchia uma caniçada para vender aos padeiros da Póvoa nas feiras que em todas as quartas e sábados de cada semana ali se realizavam.Como adjuvante tinha ainda um pequeno negócio de tabacos.A sua casa era térrea e torre, conforme o acidentado do terreno. Térrea para as traseiras onde se situava o quintal, e torre para a frente, à margem do caminho das Regueiras, em plano inferior ao da Escola. Por duas janelas abertas na fachada para o vale do Este, ameno e viçoso, entra o sol logo que nasce até se esconder por trás dos cómoros que lhe ficam para o ocidente. Do rio ouve os uivos temerosos quando é tormenta, ou os murmúrios suaves e harmoniosos quando é bonança. No muro que veda o quintal abre-se em frente da escola uma porta com padieira de granito. Entre as janelas tinha uma tabuleta, um rectângulo traçado a preto na superfície branca, em que se lia: -Tabacos – de José Oliveira – Habilitado. Era o estanque de tabacos, que a Sra. Delfina nas suas recovagens diárias também não se esquecia de abastecer.Em cima duma mesa, enegrecida e carunchosa, dentro da sala melhor, ao lado da janela, estavam os tabacos; uns pobres cigarros “Kentukys”, lumes–prontos, de pau e de cera, e rapé para cheirar.
Naquele tempo era vulgaríssimo o uso do rapé; e usavam um grande lenço vermelho com barras brancas, era o lenço tabaqueiro. O rapé em pó, tomava-se com as pontas dos dedos polegar e indicador duma caixa tabaqueira, ou aspirando o pó por uma cânula que se introduzia no nariz.
Quem pretendesse alguns desses artigos, batia à porta do coberto, um portal de duas empenas com aldrabas de batente, e era servido por uma cesta suspensa de um cordel, que descia da janela com a mercadoria desejada e subia com a paga.A Ti–Delfina morreu. E o Ti-Zé ficando só, vendeu a casa e foi morar em Casais, numa casinha cercada de altos muros, que a Silvina do Padre ali tinha herdado do seu tio Padre Manuel Rodrigues Ferreira.À noite, depois da ceia, ouvia-se na vizinhança declamar em alta voz. Se no outro dia lhe perguntassem se estivera doente, ou tivera visitas àquela hora, respondia que era ele a rezar. E observando-se-lhe que para isso, não era preciso tamanha berraria, concluía com ingénua, mas sincera convicção:-“Ah! Não que sim...Mas a reza em coro é mais aceite”E lá foi acabando os seus dias, carregando com uma volumosa hérnia inguinal a bambolear dentro da maneira das calças como alforge de pobre mal cheio.

Joaquim D. Cancela

3 comentários: