Agustina Bessa Luiz faz hoje 90 anos.
Afastada da escrita por razões de saúde, silenciosamente, não fora o sobressalto com algum ruído, causado pela publicação de dois novos inéditos numa nova colecção chamada Contemplações da editora Babel, exclusivamente dedicada à escritora.
O primeiro volume da colecção, intitula-se “Kafkiana” e é constituído por quatro
pequenos textos que se debruçam sobre a natureza do homem kafkiano: a esse propósito, disse Agustina:
" Quem, como eu, por razões de estudo, se interessou vivamente por um
autor (trata-se de Franz Kafka, em que não pretendo doutorar-me, mas de
que tirei a licenciatura) durante muito tempo, não pode evitar a sua
sombra. Pelo que os meus artigos muitas vezes rodeiam os seus
pensamentos, confiam nas suas palavras com esse abandono carinhoso que
dedicamos a quem nos deu o pão do ensino”
O segundo volume da coleção é um conto de 1951, intitulado “Cividade”, que recebeu nesse mesmo ano o
primeiro prémio de ficção nos Jogos Florais do Minho, aos quais
concorreu com o nome do marido, Alberto de Oliveira Luís.
Neste conto, Agustina revive um cenário da infância, de quando
passava férias na Quinta de Cavaleiros, perto da Póvoa de Varzim.
Estes dois inéditos são publicados hoje, dia do seu aniversário.
E da extensa obra literária que Agustina produziu, transcrevo o texto que se segue, por me parecer oportuno no tempo que se vive
Hoje estão em causa, não as paradas, que é tudo em que as multidões são adestradas, ou a guerra, a que se convidam; está em causa toda uma dinâmica nova para criar o habitat duma humanidade que atingiu a saturação da servidão, depois de há milénios ter dado o passo da reflexão. As pessoas interrogam-se em tudo quanto vivem. A saturação da servidão não é uma revolta; é um sentimento de desapego imenso quanto aos princípios que amaram, os deuses a que se curvaram, os homens que exaltaram. (...) Mas foi crescendo a saturação da servidão, porque a alma humana cresceu também, tornou-se capaz de ser amada espontaneamente; tudo o que servimos era o intermediário do nosso amor pelo que em absoluto nós somos. Serviram-se valores porque neles se representava a aparência duma qualidade, como a beleza, o saber, a força; esses valores estão agora saturados, demolidos pela revelação da verdade de que tudo é concedido ao corpo moral da humanidade e não ao seu executor.
Um grande terror sucede à saturação da servidão. Receamos essa motivação nova que é a nossa vontade, a nossa fé sem justificação a não ser estarmos presentes num imenso espaço que não é povoado pela mitologia de coisa alguma. Somos novos na nossa velha aspiração: a liberdade é doce para os que a esperam; quando ela for um facto para toda a gente, damos-lhe outro nome.
Agustina Bessa-Luís, in 'Dicionário Imperfeito'
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