quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Recordar Zé Afonso


foto de last.fm


Utopia
Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo, mas irmão
Capital da alegria

Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu desafio

Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso, a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?

Zé Afonso

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Migalhas que ficaram III


fotografia de Mariano Pires


Ti-Zé da Delfina


A Sra. Delfina exercia a profissão de recoveira. Todos os dias lá ia ela pelo caminho de Coucelos, abaixo, para fugir às calmarias de sol das estradas e encurtar distancias, de canastra escurecida pelo uso, na cabeça, até à Póvoa de Varzim para trazer e levar recados e encomendas para quem precisasse dos seus préstimos. E muitos pretendentes eram eles, por não haver na freguesia loja de coisas, das principais coisas necessárias à economia doméstica. Era uma onça de chá para este, um arrátel de sabão para aquele, um quartilho de azeite para outro... Recados para lá, recados para cá.O meu Tio materno, José Ferreira Júnior, era o Professor Oficial (Professor Régio como dantes se dizia). Todos os dias só desjejuava, antes das aulas, bebendo chá, infuso, acompanhado com finas fatias de molete. Por isso a minha Tia Francisca que o era por duplo título – afim e consanguíneo – havia que ter sempre provida dessa especiaria a latinha de o guardar. Esse encargo se tornava leve por ter ali ao pé, mesmo em frente e à mão de semear, a pessoa que acertadamente lhe resolvia o problema. Era só chegar à janela e chamar, porque a frente da residência escolar dava, depois do caminho, para as traseiras da casa da vizinha.-“ Ó Delfina...Delfina, amanhã traz-me uma onça de chá. Os pequenos vão aí levar-te o dinheiro”.E a Sra. Delfina que ouvia o recado e o arruído das crianças em tropel pelo quintal abaixo, assomava à varanda de pau que para ali dava e recebia delas o dinheiro da encomenda.O seu homem, o sr. Oliveira, ocupava a sua actividade num modesto negócio de madeiras que amanhava por suas mãos. Comprava uma árvore, carvalho, sobreiro, castanheiro, cerejeira... Tirava dela tudo o que pudesse ser utilizado na confecção ou reparação de alfaias agrícolas: umas cambas ou uns miúlos para umas rodas, um eixo para um rodeiro, uma cheda para um carro, umas relhas para um arado, um tornadouro para uma grade, umas aduelas para um pipo, uma tábua para uma escudela... Tudo ali se encontrava. O que não desse obra, dava lenha para vender; e da miuçalha enchia uma caniçada para vender aos padeiros da Póvoa nas feiras que em todas as quartas e sábados de cada semana ali se realizavam.Como adjuvante tinha ainda um pequeno negócio de tabacos.A sua casa era térrea e torre, conforme o acidentado do terreno. Térrea para as traseiras onde se situava o quintal, e torre para a frente, à margem do caminho das Regueiras, em plano inferior ao da Escola. Por duas janelas abertas na fachada para o vale do Este, ameno e viçoso, entra o sol logo que nasce até se esconder por trás dos cómoros que lhe ficam para o ocidente. Do rio ouve os uivos temerosos quando é tormenta, ou os murmúrios suaves e harmoniosos quando é bonança. No muro que veda o quintal abre-se em frente da escola uma porta com padieira de granito. Entre as janelas tinha uma tabuleta, um rectângulo traçado a preto na superfície branca, em que se lia: -Tabacos – de José Oliveira – Habilitado. Era o estanque de tabacos, que a Sra. Delfina nas suas recovagens diárias também não se esquecia de abastecer.Em cima duma mesa, enegrecida e carunchosa, dentro da sala melhor, ao lado da janela, estavam os tabacos; uns pobres cigarros “Kentukys”, lumes–prontos, de pau e de cera, e rapé para cheirar.
Naquele tempo era vulgaríssimo o uso do rapé; e usavam um grande lenço vermelho com barras brancas, era o lenço tabaqueiro. O rapé em pó, tomava-se com as pontas dos dedos polegar e indicador duma caixa tabaqueira, ou aspirando o pó por uma cânula que se introduzia no nariz.
Quem pretendesse alguns desses artigos, batia à porta do coberto, um portal de duas empenas com aldrabas de batente, e era servido por uma cesta suspensa de um cordel, que descia da janela com a mercadoria desejada e subia com a paga.A Ti–Delfina morreu. E o Ti-Zé ficando só, vendeu a casa e foi morar em Casais, numa casinha cercada de altos muros, que a Silvina do Padre ali tinha herdado do seu tio Padre Manuel Rodrigues Ferreira.À noite, depois da ceia, ouvia-se na vizinhança declamar em alta voz. Se no outro dia lhe perguntassem se estivera doente, ou tivera visitas àquela hora, respondia que era ele a rezar. E observando-se-lhe que para isso, não era preciso tamanha berraria, concluía com ingénua, mas sincera convicção:-“Ah! Não que sim...Mas a reza em coro é mais aceite”E lá foi acabando os seus dias, carregando com uma volumosa hérnia inguinal a bambolear dentro da maneira das calças como alforge de pobre mal cheio.

Joaquim D. Cancela

domingo, 9 de agosto de 2009

As minhas histórias I


                                             Érasme Quellin-retrato de menina
                                                 (museu Groeninge, Bruges)



O grão de milho
No fim de tarde de um Outono quente o milho estendia-se na eira a secar, mas, para não apanhar o relento da noite, arrecadava-se para o varandão ou, depois de junto no meio da eira, cobria-se com panais de linho.
Nesse dia, era essa a tarefa da Ana, enquanto eu no outro canto da eira brincava a encher os ouvidos de grãos de milho para experimentar a sensação de não ouvir. Mas não conseguia.
-
Chame por mim, a ver se ouço!...Tantas vezes isto se repetiu que, a Ana veio ver, o que se estava a passar.
-
Oh menina!... Qu’está a fazer?!
O pânico apoderou-se da cara dela; a aflição foi tanta que logo me convenci que o disparate era grande. De imediato me esvaziou os ouvidos mas, um grão teimou em não sair.
-
E agora?
-Vou ter que dizer à Senhora.
- Para que fez isso?
-E agora, se não sai?
Nesse atropelo de perguntas sem respostas, a ansiedade começou a apoderar-se de mim.
-
Oh minha senhora , a menina tem um “graeiro” de milho no ouvido!...A Mãe olhou e pareceu-lhe que o meu Pai resolveria o problema.
Foi-se acender o candeeiro de petróleo, o maior.
Estávamos em plena guerra mundial, com racionamento e a aquisição de petróleo, assim como os artigos de mercearia era feita por meio de senhas. Beneficiávamos da dispensa de algumas senhas por parte de pessoas que, não as utilizando, as cediam por razões económicas ou culturais.
Mas mesmo assim, faziam-se muitas economias. À mesa usava-se com frequência o candeeiro de azeite de três bicos; porque os candeeiros de petróleo seriam para se escrever ou ler. Mas também havia o candeeiro grande na sala de visitas; e foi esse que se acendeu.
O meu Pai estava sério; não o recordo zangado, mas apreensivo. Muniu-se de uma pinça que desinfectou com aguardente de casa, e depois de várias tentativas sem nada conseguir, concluiu:
-
Tem de se ir amanhã à Póvoa.
A Mãe suspirou com os seus habituais: - ai, ai!...
No dia seguinte, logo pela manhã fui à Póvoa de Varzim com a Mãe e dirigimo-nos à farmácia Lemos. O farmacêutico era nosso conhecido e era uma pessoa simpática e calma. Com um instrumento, que hoje sei tratar-se de uma cureta, tentou arrastá-lo, mas acabou por desistir.
-
Não é possível. Quanto mais tento, mais o enterro; é melhor ir ao médico.
-Vamos ao Dr. Vieira Trocado.
Agora é que o pânico se apoderou verdadeiramente de mim. Era o médico lá de casa para as coisas mais complicadas. Sim, porque o médico que frequentava a nossa casa era o Dr. João Alves, conhecido entre nós pelo Dr. de Macieira; grande fumador e jogador de damas. Era bom médico, inteligente, mas dada a amizade e confiança que existia entre nós, quando a situação parecesse mais preocupante, o meu Pai recorria ao Dr. Vieira Trocado.
Não gostava dele. Tinha uma expressão  de pessoa incomodada.
Entramos para a sala de tratamentos.
Nem um sorriso!
O tabuleiro do material cirúrgico exibia uma panóplia de ferros, assustadora.

Não me vai esburacar com aquela ferraria toda”.
“Eu grito” .
Estas frases rolavam no meu pensamento.
A minha cabeça começou a latejar. A Mãe, contrariada, lá me imobilizou conforme as indicações do médico, mas de nada valeu.
Gritei, pontapeei, mordi, de tal forma que, a minha Mãe, ela própria, ordenou que parasse. O médico, mal humorado, repreendeu-a pela incapacidade  de me manter submissa e calada.
-
Sendo assim, terá que ir ao Porto a um cirurgião; talvez com anestesia...
Entregou um cartão com o nome que ele recomendava.
A Mãe, no entanto, foi-se aconselhar com o meu tio António, irmão dela,  que vivia na Póvoa.
-
Antes disso vai ao Dr. Sampaio de Araújo.
O Dr. Sampaio de Araújo era um médico recentemente formado e que gozava de muita credibilidade, sobretudo tratando-se de crianças. O meu tio não se cansou de o elogiar. E  lá fomos!
O consultório era na residência. Entramos e aguardamos numa sala com  uma marquesa ao centro.
Sentia-me perdida. Nunca o tinha visto.
"
Como seria agora?"
De repente, entra na sala um homem alto, que compreendi de imediato ser o médico, a rir-se e num ápice, sinto-me a pairar no ar e logo em seguida sentada em cima da marquesa.
-
Então o que é que esta menina tão bonita andou a fazer?
-Sabes? Vamos fazer uma partida a esse “milheiro”.
-Vamos dar-lhe uma "mangueirada" e tu vais ver como ele salta cá para fora. Queres ver?
Senti que tinha ali um aliado. Enquanto isso, a empregada preparava a água acidulada bem como os apetrechos necessários.
E  sem me aperceber o que se passou...
-
Já está.
O grão de milho saltava no fundo da cuvete.
Não sei se ri, se chorei; a alegria era enorme!...
Mais tarde, proporcionou-se frequentar a casa dele.
Ele lembrava-se da menina do grão de milho.
Eu nunca o esqueci.


 C C
(fotografia de Mariano Pires
)

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sábado, 8 de agosto de 2009

reflexo em Sta. Maria do Bouro


fotografia de Mariano Pires

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Migalhas que ficaram II


A MINHA ESCOLA

A minha primeira escola – minha e de todas as gerações que por ali passaram, antes e depois de mim – gravou no meu espírito, profundas impressões que o tempo por largo que seja não conseguirá destruir ou apagar.
Foi nela que aprendi a pronunciar as primeiras letras, a ler as palavras, as frases, os trechos, e com a leitura, o seu significado e sentido; foi nela que exercitei o traçado de riscos até à escrita completa dos fonemas e vocábulos como expressão dos pensamentos e ideias, ou o desenho como representação ideio gráfica das coisas. Foi ela que me imprimiu a ideia do dever, e as normas da moral e do civismo.
E, de tanto ali andar e desandar, por dentro, nas horas de estudo, e por fora, nos intervalos de recreio e folga, podendo-se dizer que nenhum espaço ou canto ficou sem a minha presença, - e de tanto ali andar e desandar, dizia, e com elas me familiarizar, a cada tábua e a cada pedra, como a cada sítio e a cada coisa, ficou presa minha alma duma indelével e saudosa recordação.
Se abrangermos, como é, na Escola a trilogia – edifício, professor e alunos – então a alma tem de transcender da recordação das coisas que nos são queridas, para a gratidão respeitosa de quem, pelo exemplo que infundia e ensinamentos que dava, formou e alicerçou a personalidade de cada um de nós.
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A escola fica situada na encosta das Pedregulhas à margem do caminho da igreja.
Na sua frente, depois da casa do Ti-Zé da Delfina que lhe fica a seguir para baixo, estende-se a várzea viçosa de milharais e vinhedos; e mais alem, para nascente, a graciosa encosta do monte de Casais com o denso casario alcandorado entre tufos de verdura e flores, parecendo que todas as janelas sorriem para ela a espreitar por entre a folhagem.
Também o sol ao despontar, enfia por entre frondoso arvoredo de freixos e salgueiros e vai acariciá-la e afagá-la a esparrinhar raios de luz e calor, para a iluminar e aquecer como ela ilumina e aquece os corações das gerações infantis que por ali passam.
Sempre “risonha e franca”, ela lá está, donairosa e acolhedora, a dardejar luz na inteligência das crianças que dela se acercam.
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A escola é do tipo indeterminado. Foi, contudo, expressamente construída para isso e oferecida pelo benemérito José da Silva Arcos que para o Brasil havia ido ainda novo.
Para comemorar o seu rasgo generoso e lembrar a todos, o autor ilustre que o cometera, fixaram uma placa com o seu nome na padieira da porta da entrada. E na sala, por trás e por cima da cadeira do Professor, dois retratos de cor sépia – um dele e outro de sua mulher – assinalavam o reconhecimento de todos quantos iam aurir ali os benefícios da sua acção benfazeja.
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A sala tinha apenas duas janelas na ala direita. No seu intervalo, um quadro preto de ardósia. O lugar não era apropriado; mas como poucos exercícios se faziam nele, tolerava-se a colocação imprópria.
Por cima, espetado na parede, em direcção oblíqua, um pequeno tubo servia de apoio nos tempos passados `a bandeira usada nas célebres “sabatinas”, entre dois grupos em que as classes se dividiam. No lado oposto outro tubo, na mesma posição, assegurava a posse da bandeira quando a turma desse lado fosse a vencedora.
As escolas eram raras, excessivamente lotadas, por isso, era exigido ao professor o uso de métodos e processos que garantissem quanto possível o bom êxito do trabalho e esforços dispendidos. Os meios mais adoptados eram os “monitores” e as “sabatinas”que consistiam no debate colectivo de determinadas matérias dos programas entre os dois grupos rivais.
Ao fundo estava uma mesa grande com dois bancos, um à frente e outro atrás encostado ao biombo que separava a sala de aula do vestiário. Por cima, um relógio de parede, marcava no movimento sincrónico do pêndulo, o tempo daquele odioso cativeiro para uns, e de espiritualidade e prazer para outros.
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Entrei ali pela primeira vez há muitos anos. Nem sei quantos. Acompanhado pelos meus irmãos mais velhos, Manuel e José, lá fui. Subi a escada de pedra que lhe dá acesso e entrei. Depositados os chapéus à entrada do corredor que servia de vestiário, devia ter ido como os outros, pedir a “bênção ao mestre”. Do que se passou em seguida a minha memoria nada regista. Essa faculdade privilegiada ficou a Trindade Coelho. Mas, como ele, eu também devia ter sido a “encomendinha”.
Os que entravam pela primeira vez, iam, depois dos cumprimentos regulamentares, sentar-se no banco de trás. Era por ali que se iniciava a carreira escolar. Os lugares iam sendo ocupados gradualmente depois, segundo o desenvolvimento escolar de cada um, até ao último da esquerda da última coxia de carteiras. Eram os lugares dos que sabiam mais, dos que atingiam o mais alto grau escolar. Também lá estive, nesse lugar cimeiro. Com alguns companheiros subi a ladeira íngreme do curso. Ultrapassando-os empoleirei-me na grimpa, termo daquela por onde se subia de harmonia com o aproveitamento escolar e, lá permaneci até me despacharem para outra parte. Sim, porque enquanto éramos “encomendinha”, éramos despachados conforme o destino que nos queriam dar.


Joaquim D. Cancela

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Que música escutas tão atentamente


fotografia de Mariano Pires


Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.



Eugénio de Andrade
(Coração do dia)

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Migalhas que ficaram I

A primeira página deste blog, é uma pequena homenagem ao meu Pai, Joaquim Domingues Cancela, publicando um dos vários contos que ele escreveu. Neste caso, foi premiado com o 2º Prémio em "Conto" nos IX jogos Florais da "Escola Remoçada" de Braga em 1969.
Seguir-se-ão outros, sob o título " Migalhas que ficaram", designação dada por ele ao conjunto de histórias que escreveu na recolha de episódios e personagens que a sua memória guardou.
O local onde estas histórias se desenrolam, é S. Miguel de Arcos, concelho de Vila do Conde.
Também colaborarei com as minhas, que também já tenho guardadas.
Amenizarei a tarefa com textos de autores da minha preferência, e música, sempre.


O cão do Carreira

O MEDO DE UM CÃO QUE METIA MEDO


Era feroz o animal. O ladrar parecia o bramido da tempestade. Cavo e profundo como o urro do leão. Não latia nem gania; mas ladrava, sempre furioso e ameaçador. De musculatura forte e vigorosa, ele arremetia sempre, provocado ou não. O pêlo era pedrês e da cor-do-monte; a boca amplamente rasgada, de rebordos pretos, tinha um instinto altivo e indomável.

Entre os rapazes da escola e ele, abria-se um profundo fosso de difícil reconciliação; por isso, quando se encontravam, travava-se entre eles feroz e renhida luta. O campo de batalha era o largo fronteiro à casa de habitação – o Largo das Oliveiras.

Os rapazes desciam no fim da aula a rampa da escola dali ao pé. Se o portal estava aberto, ali os esperava o molosso, preso a grossa corrente; ou, se então vagueava pelo eirado ou quintal, lá vinha atraído pela algazarra, decidido a enfrentar todos os ataques que à pedrada lhe dirigia a irrequieta falange infantil.

A sua posição era sempre dentro do ângulo formado pela fachada da casa e um muro perpendicular na direcção do poente. Ali se entrincheirava sempre, embora em situação desfavorável.

Os rapazes, em linha de combate, estendiam-se em hemiciclo a fechar o ângulo, ao largo. As munições tinham-se ali em abundância – cascalho e rebos dispersos pelo chão, a topar nos pés, e arrumados aos lados do recinto.

O ataque, quando andava livre, tinha de ser cerrado e contínuo, porque se esmorecesse, o inimigo avançava e, ultrapassando a terra de ninguém, invadia a linha adversária e começaria a chinchar fartamente aquelas carnes tenras.

As pedras voavam pelo ar e caíam no recinto como grossas gotas de chuva em vésperas de aguaceiro. No meio daquele apedrejamento, o cão ladrava e corria de um lado para o outro atrás dos calhaus maiores a tentar sopesá-los com os dentes. E, furioso, mordia-os.

O fragor da luta ouvia-se ao largo; e o combate só terminava quando o vinham recolher e fechar a porta, por haver chegado até lá dentro o alarido do cão e dos rapazes.
...
No dia da vessada do campo da Castanheira, também lá estava. De madrugada para lá foram. E enquanto descarregavam as apeirias, jungiam o gado e arrumavam ferramentas, ele passou uma revista ao campo: cheirou as umbreiras da cancela e alçou a perna contra uma, examinou os buracos das paredes, farejou os pés das uveiras e foi aninhar-se, depois, debaixo do carro.
Antes, porém, de se alojar, redemoinhou no lugar escolhido umas duas ou três voltas e alapou-se depois. Enroscou-se, apoiou o focinho no vazio direito e começou a dormitar. De quando em quando, estremecia e abria um olho a espreitar por baixo de uma orelha.
...
Manhã alta. O sol esplendente já esfuziava há muito por entre a ramaria das matas a tingir de finas aguarelas a paisagem e as folhas aveludadas dos pâmpanos. Por toda a campina retumbe uma maviosa sinfonia de vozes, em coro, das cigarras e dos grilos, dos pimpalhões e das rolas, dos zéfiros e do homem.

Para não cair em modorra pelo cansaço e pelo calor, o homem afouta o gado:
“Ei, Cabano!... Ei!... lá, anda!... Vai lá fora, vai!... Ei!...”
E para contentar o Caroucho que também queria ser afoutado e ouvir o seu nome repercutido na quebrada dos cerros e na lonjura dos vales:
“Vamos lá, Caroucho!... Anda lá, anda!... Ei!...”
Ou, então, lançando o braço por cima da cernelha a afagá-los:
Então?!...Vamos lá fora, vamos!... Ei!...
E os bois pachorrentos, todos anchos, lá vão, jungidos ao cambão, puxando pacientemente o vessadouro a virar as leivas húmidas que, aquecidas pelo sol acariciador da manhã, ressuam vapores diáfanos e leves a subirem ao céu.

A equipagem, que viera na sua maior força, lá anda ocupada nas lides da sementeira. Só o cão dormita. Contudo, de orelhas espetadas, ele pressente os pequenos ruídos, por pequenos que sejam, e, de narinas ao léu, fareja o ar.
...
Os rapazes, em numeroso magote, seguiam a caminho da escola, tranquilos e despreocupados, em marcha lúdica. Corre um para a direita, atravessa outro para a esquerda, persegue este, foge aquele, numa confusão de vozes, porque todos simultaneamente falam, gritam e riem. Nem um sinal de tristeza; só alegria e risos.

Mas o ambiente de luz e gargalhadas, que naquele momento imperava neste lanço da estrada, depressa se ia transformar em confusão aterradora, de desespero e medo.

A caravana vai a passar em frente da rampa que, entre a capela do Senhor dos Desamparados e a casa do Padre Manuel, acede ao campo da Castanheira.

Então, ante a algazarra, o lebréu desperta: fareja e ouve. E, num abrupto rompão a ladrar, ataca furiosamente. Encarniçadamente. Num ápice, sobe a ladeira e persegue na estrada os pobres rapazes que, ao ouvi-lo, largaram em ansiada gritaria, a fugir a toda a brida. De chapéu na mão, para os não perderem, aterrorizados, correm quanto podem.

Meu irmão José era o último do rancho em debandada. Entre ele e o cão já só havia o espaço dum pequeno salto de boieira. Embora denodadamente se empenhasse na fuga, não conseguia evitar de ser alcançado. Uma enorme aflição o dominava porque, sentindo a proximidade do inimigo, já adivinhava os dolorosos rasgões da sua carne produzidos pelos dentes afiados do feroz canino. Um atacava com fúria, o outro com desespero fugia.
Ia ser agora o ajuste de contas!...” – pensava ele.
Aquelas pedradas com que tantas vezes fora atingido junto da entrada do seu posto de vigia e guarda, iam ser pagas com umas chinchas bem dadas nas bochechas do primeiro que alcançasse. E o primeiro ia ser ele”.
Naquele momento era o caos, o terror, a mortificação!....
Ia ser espezinhado, esgatanhado, mordido, estrancinhado...- eu sei lá!... – comido até! Aquele canzarrão, maior do que ele, mais corpulento, mais forte, assim furioso, até o comia!... Um horror!...”
Estes pensamentos tumultuavam, como meteoros, na mente da aflita criança. E corria quanto podia, a gritar.
Nisto, um tropeção brusco, a culminar o desespero, prostra-o no macadame da estrada, como um sapo.
Pronto!...Não foi preciso mais nada. O animal que arremetia raivosamente em vertiginosa correria, parou de repente, como se automaticamente uma mola o travasse, e retrocedeu.

Com o rabo caído e de orelhas derrubadas, ele foge humildemente a olhar para trás de quando em quando, como quem receia que o venham responsabilizar por aquela queda desastrosa que os seus olhos acabavam de presenciar.

E, ao desquinar à casa do Padre para se agachar no seu ninho debaixo do carro, ainda volveu um olhar receoso e tímido para se certificar de que não iam atrás dele tomar-lhe contas pelo desastre ocorrido de que se sentia o único responsável.
Ele que tanto medo havia metido, também ele, foge agora e ... cheio de medo.

Joaquim D. Cancela