quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Migalhas que ficaram II


A MINHA ESCOLA

A minha primeira escola – minha e de todas as gerações que por ali passaram, antes e depois de mim – gravou no meu espírito, profundas impressões que o tempo por largo que seja não conseguirá destruir ou apagar.
Foi nela que aprendi a pronunciar as primeiras letras, a ler as palavras, as frases, os trechos, e com a leitura, o seu significado e sentido; foi nela que exercitei o traçado de riscos até à escrita completa dos fonemas e vocábulos como expressão dos pensamentos e ideias, ou o desenho como representação ideio gráfica das coisas. Foi ela que me imprimiu a ideia do dever, e as normas da moral e do civismo.
E, de tanto ali andar e desandar, por dentro, nas horas de estudo, e por fora, nos intervalos de recreio e folga, podendo-se dizer que nenhum espaço ou canto ficou sem a minha presença, - e de tanto ali andar e desandar, dizia, e com elas me familiarizar, a cada tábua e a cada pedra, como a cada sítio e a cada coisa, ficou presa minha alma duma indelével e saudosa recordação.
Se abrangermos, como é, na Escola a trilogia – edifício, professor e alunos – então a alma tem de transcender da recordação das coisas que nos são queridas, para a gratidão respeitosa de quem, pelo exemplo que infundia e ensinamentos que dava, formou e alicerçou a personalidade de cada um de nós.
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A escola fica situada na encosta das Pedregulhas à margem do caminho da igreja.
Na sua frente, depois da casa do Ti-Zé da Delfina que lhe fica a seguir para baixo, estende-se a várzea viçosa de milharais e vinhedos; e mais alem, para nascente, a graciosa encosta do monte de Casais com o denso casario alcandorado entre tufos de verdura e flores, parecendo que todas as janelas sorriem para ela a espreitar por entre a folhagem.
Também o sol ao despontar, enfia por entre frondoso arvoredo de freixos e salgueiros e vai acariciá-la e afagá-la a esparrinhar raios de luz e calor, para a iluminar e aquecer como ela ilumina e aquece os corações das gerações infantis que por ali passam.
Sempre “risonha e franca”, ela lá está, donairosa e acolhedora, a dardejar luz na inteligência das crianças que dela se acercam.
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A escola é do tipo indeterminado. Foi, contudo, expressamente construída para isso e oferecida pelo benemérito José da Silva Arcos que para o Brasil havia ido ainda novo.
Para comemorar o seu rasgo generoso e lembrar a todos, o autor ilustre que o cometera, fixaram uma placa com o seu nome na padieira da porta da entrada. E na sala, por trás e por cima da cadeira do Professor, dois retratos de cor sépia – um dele e outro de sua mulher – assinalavam o reconhecimento de todos quantos iam aurir ali os benefícios da sua acção benfazeja.
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A sala tinha apenas duas janelas na ala direita. No seu intervalo, um quadro preto de ardósia. O lugar não era apropriado; mas como poucos exercícios se faziam nele, tolerava-se a colocação imprópria.
Por cima, espetado na parede, em direcção oblíqua, um pequeno tubo servia de apoio nos tempos passados `a bandeira usada nas célebres “sabatinas”, entre dois grupos em que as classes se dividiam. No lado oposto outro tubo, na mesma posição, assegurava a posse da bandeira quando a turma desse lado fosse a vencedora.
As escolas eram raras, excessivamente lotadas, por isso, era exigido ao professor o uso de métodos e processos que garantissem quanto possível o bom êxito do trabalho e esforços dispendidos. Os meios mais adoptados eram os “monitores” e as “sabatinas”que consistiam no debate colectivo de determinadas matérias dos programas entre os dois grupos rivais.
Ao fundo estava uma mesa grande com dois bancos, um à frente e outro atrás encostado ao biombo que separava a sala de aula do vestiário. Por cima, um relógio de parede, marcava no movimento sincrónico do pêndulo, o tempo daquele odioso cativeiro para uns, e de espiritualidade e prazer para outros.
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Entrei ali pela primeira vez há muitos anos. Nem sei quantos. Acompanhado pelos meus irmãos mais velhos, Manuel e José, lá fui. Subi a escada de pedra que lhe dá acesso e entrei. Depositados os chapéus à entrada do corredor que servia de vestiário, devia ter ido como os outros, pedir a “bênção ao mestre”. Do que se passou em seguida a minha memoria nada regista. Essa faculdade privilegiada ficou a Trindade Coelho. Mas, como ele, eu também devia ter sido a “encomendinha”.
Os que entravam pela primeira vez, iam, depois dos cumprimentos regulamentares, sentar-se no banco de trás. Era por ali que se iniciava a carreira escolar. Os lugares iam sendo ocupados gradualmente depois, segundo o desenvolvimento escolar de cada um, até ao último da esquerda da última coxia de carteiras. Eram os lugares dos que sabiam mais, dos que atingiam o mais alto grau escolar. Também lá estive, nesse lugar cimeiro. Com alguns companheiros subi a ladeira íngreme do curso. Ultrapassando-os empoleirei-me na grimpa, termo daquela por onde se subia de harmonia com o aproveitamento escolar e, lá permaneci até me despacharem para outra parte. Sim, porque enquanto éramos “encomendinha”, éramos despachados conforme o destino que nos queriam dar.


Joaquim D. Cancela

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