Uma Pescaria no Rio Este
Os milhos já tinham saído dos campos. Os estrepes lá estavam aguçados a atestar uma boa colheita e a dilacerar algum pé de quem se afoitasse a andar por ali descalço. As borboletas esvoaçavam febrilmente, irisadas pelo sol outonal, pousando num montículo ou numa folha verde, a chupar em sorvo guloso, o néctar delicioso que as regalava. Uma vaca solitária, pacificamente deambulava por aqueles sítios, a pastar as folhas secas que se tinham desprendido das canas recolhidas. No rio, os peixes vogavam pausadamente, ou até paravam aos cardumes, formados em linha de costado ou de frente.
E os rapazes da Escola, na ida e na volta, em cima da Pinguela* ou debruçados no parapeito da margem esquerda para montante, ali ficavam, embevecidos, a admirar aquela fauna aquática que tanto os maravilhava. Viam-nos pairar mansamente e sentiam um desejo imenso de os pescar, de os ter nas suas mãos, de apalpar as suas escamas, lisas e escorregadias, de sentir nos dedos o latejar angustiado do seu ventre, o arfar ansioso das guelras, o palpitar agitado do coração aflito.
Deitavam migalhas de pão na água para os verem agitar-se em cardumes na disputa do apetitoso manjar. De súbito, surgia uma truta arisca a cruzar-se vertiginosamente nas águas, como um sarrisco; levava outro destino: a caça de algum insecto que bruxuleava à superfície.
Aquela ideia dos rapazes, tão obsessora, tão afincada de os pescar, não os largava. Apoquentava-os. E, quando passavam junto do rio, ou na Pinguela, assumia então proporções incalculáveis.
Se pudessem apanhá-los à mão, até se atirariam à água!
Apresentavam planos, comentavam.
- Eu tenho uma cana da Índia - dizia um.
- E a linha e o anzol?
- Cinco reis dão três - acrescentava outro.
Debatidos os planos e as possibilidades de os realizar, e impelidos por uma indomável força de vontade que impiedosamente os dominava, lá foram adquirindo os apetrechos necessários à obra que com tanto afinco arquitectavam. E, quando todo o equipamento apropriado estava reunido, sem esquecer a caixa das minhocas para as iscas, parecia que a alegria lhes faiscava nos olhos arregalados que, reflectiam o entusiasmo e alvoroço que lhes ia na alma.
.+.
E esfregavam as mãos e pinchavam em explosões de contentamento.
Naquele dia as lições nada deixaram na memória porque, o seu espírito, o sacudia um estrepitoso turbilhão de pensamentos à volta do que iria ser aquela tão desejada pescaria.
Aquilo é que ia ser!
Aquilo é que ia ser!
Os peixes, em cardumes à volta do anzol que a isca encobria, febrilmente a debicá-la!...
E quando um, mais guloso e arrojado, engolisse o engodo que lhe ofereciam no anzol ! ?...
Lá viria ele içado na linha!...
Aquilo é que ia ser !...
E, mal se apanharam fora da porta da Escola, abalaram como setas por ali fora até ao ponto previamente escolhido. Uns seriam os actores, munidos de cana, linha, anzol. Os outros seriam os espectadores, a compartilhar das mesmas sensações e anseios dos primeiros.
.+.
A linha foi lançada. Um anzol caiu na água remansada e um pequeno chumbo adrede ligado à linha fê-lo mergulhar.
Espalhou-se, então, na fundura das águas o aroma do saboroso petisco.
Um eirogo lambareiro farejou a isca. Incitado pelo apetite que ela lhe despertara, saiu do esconderijo na toca de uma cepa de salgueiro e dirigiu-se por entre as poldras do fundo para ali.
O pescador, cá de cima, observava-lhe os movimentos. As fontes a latejar e o coração apertado, comprimido, ia pulsando a custo. Parecia que abafava.
Um louva-a-deus a cofiar as mandíbulas, pousado numa folha de amieiro contemplava a cena a olhar de soslaio pelo lado esquerdo.
O peixe abriu a boca e engoliu a isca. Fez um oco na cervis. Engoliu mais fundo para desprender o pitéu e sentiu no gasganete uma picada do anzol, mas não desistiu. Retesou os músculos e enrolou-se numa pedra para se firmar e não deixar escapar a presa apetitosa.
O pescador, nervosamente atento, nem respirava; e, pressentindo uma ligeira pressão na cana e vendo-o a colear-se e a querer apoderar-se melhor do manjar, monologou com os seus botões:
- É agora!
E zás, dá um puxão violento. Mas, quando contava ver a enguia a contorcer-se no ar enganchada pelas guelras, presenciou, desolado, uma bola de chumbo na extremidade da linha a baloiçar no espaço.
A linha quebrara. E o louva-a-deus que presenciara a cena a olhar de nesga, fez uma figa por despedida, e agitando as asas a brilhar ao sol, dourado desse dia, foi pousar no cucuruto frondoso dum freixo da margem oposta.
Os outros estavam radiantes. Haviam pescado três peixes que enfiaram pelas câmaras branquiais numa gancha de salgueiro cortada ad hoc.
Neste momento, o Zeferino Martins atravessava a Pinguela e dirigia-se sorridente e alegre para o grupo. Vinha descalço e em mangas de camisa arregaçadas, e, na cabeça um chapéu de palha de copa afunilada e aba larga, muito em uso nas estações quentes.
Trazia adjungido à mão, por um atilho, um pequeno carro de duas rodas, cabeçalha e foeiros, miniatura de carro de lavoura, e mostrou-se desejoso de transportar nele a peixaria acabada de pescar.
Feita a carga o carro ficou cheio. Três peixes do tamanho de dedos, encheram o carro. E lá seguiram alegremente...
Rates ( escrito nos anos 60)
Joaquim D. Cancela
*Pinguela-nome da ponte onde a cena se passou
Espalhou-se, então, na fundura das águas o aroma do saboroso petisco.
Um eirogo lambareiro farejou a isca. Incitado pelo apetite que ela lhe despertara, saiu do esconderijo na toca de uma cepa de salgueiro e dirigiu-se por entre as poldras do fundo para ali.
O pescador, cá de cima, observava-lhe os movimentos. As fontes a latejar e o coração apertado, comprimido, ia pulsando a custo. Parecia que abafava.
Um louva-a-deus a cofiar as mandíbulas, pousado numa folha de amieiro contemplava a cena a olhar de soslaio pelo lado esquerdo.
O peixe abriu a boca e engoliu a isca. Fez um oco na cervis. Engoliu mais fundo para desprender o pitéu e sentiu no gasganete uma picada do anzol, mas não desistiu. Retesou os músculos e enrolou-se numa pedra para se firmar e não deixar escapar a presa apetitosa.
O pescador, nervosamente atento, nem respirava; e, pressentindo uma ligeira pressão na cana e vendo-o a colear-se e a querer apoderar-se melhor do manjar, monologou com os seus botões:
- É agora!
E zás, dá um puxão violento. Mas, quando contava ver a enguia a contorcer-se no ar enganchada pelas guelras, presenciou, desolado, uma bola de chumbo na extremidade da linha a baloiçar no espaço.
A linha quebrara. E o louva-a-deus que presenciara a cena a olhar de nesga, fez uma figa por despedida, e agitando as asas a brilhar ao sol, dourado desse dia, foi pousar no cucuruto frondoso dum freixo da margem oposta.
Os outros estavam radiantes. Haviam pescado três peixes que enfiaram pelas câmaras branquiais numa gancha de salgueiro cortada ad hoc.
Neste momento, o Zeferino Martins atravessava a Pinguela e dirigia-se sorridente e alegre para o grupo. Vinha descalço e em mangas de camisa arregaçadas, e, na cabeça um chapéu de palha de copa afunilada e aba larga, muito em uso nas estações quentes.
Trazia adjungido à mão, por um atilho, um pequeno carro de duas rodas, cabeçalha e foeiros, miniatura de carro de lavoura, e mostrou-se desejoso de transportar nele a peixaria acabada de pescar.
Feita a carga o carro ficou cheio. Três peixes do tamanho de dedos, encheram o carro. E lá seguiram alegremente...
Rates ( escrito nos anos 60)
Joaquim D. Cancela
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