Romance único de Jorge de Sena, parcela de um projecto romanesco de grande dimensão cuja designação genérica seria MONTE CATIVO, objectivando o recorte de uma geração nascida nos finais dos anos 10 do séculoXX, SINAIS DE FOGO, de uma erudição e de um rigor literário inexcedíveis, fixa um olhar sobre o ano de 1936 português, tendo como pano de fundo o início da Guerra Civil de Espanha.
Recentemente revisto e em nova edição.
XIV cap.
(...)Don Juan quebrou o constrangimento, dizendo: - Porque o amor é cego, e só quando se satisfaz é que vê...até à primeira ocasião.
Mas meu Tio mergulhara em melancolia: - Não, não é. O amor não é cego, nós é que somos cegos para ele. A gente olha e não vê. E, quando vê, já passou a ocasião. Tanto faz que seja, porque tivemos alguém que julgávamos que queríamos, como porque não tivemos quem só depois percebemos que afinal a gente queria. E o pior ainda não é isso. O pior é a gente, mais tarde, saber que nos era indiferente alguém que julgámos desejar muito. Vejam o que aconteceu comigo ... Eu não fiz a carreira que sempre tinha sonhado. E desespero-me com isso. Mas, se tivesse feito, se calhar desesperava-me com ela, porque não tenho jeito nenhum para a vida militar que era a minha. Eu estive prisioneiro na Alemanha e fugi para a Holanda, com uma mulher que me deu todo o amor de que era capaz. Também eu lho dei. E depois, quando saí da Holanda para voltar, foi muito menos para voltar que para fugir dela. Nessa altura, conheci esta - e fez de cabeça um movimento que indicava a minha tia - que de resto eu já conhecia. E casei com ela. E gostava dela. Mas sempre ela me lembrava a outra. Das duas uma, ou casei com ela porque ela me lembrava a outra e por isso mesmo, de cada vez que a olhava, me apetecia tornar a escapar, ou casei com ela para escapar da outra, e acabei não escapando de nenhuma. Há ainda uma outra hipótese. É eu ter casado com esta pela vaidade de casar com uma das filhas da Madame Simões, da rica e celebrada Madame Simões, quando me queria convencer e a toda a gente de que a minha vida não tinha acabado, a minha carreira não estava encerrada. Porque eu era um inválido de guerra. Mas o mais certo é que, desconfiado de que não tinha carreira nenhuma, julguei que casava com o dinheiro dela. Depois nasceu o meu filho... Eu já lhe contei do meu filho, não contei? (...)
XLIII cap.
Acordei com uma límpida claridade a entrar pelas janelas cujas portadas eu me esquecera de fechar. Mas o que me acordara era um burburinho que eu ouvia lá dentro, agitação, falácia pela casa adiante. Era cedo ainda, oito horas. Mas sentia-me repousado, bem disposto, e reagi com curiosidade. Que seria? Levantei-me, fui ver. Minha Mãe andava de um lado para o outro no corredor, dava ordens à criada, que fosse à mercearia já, já, antes que ela fechasse, se é que tinha aberto, trouxesse batatas, bacalhau, arroz, e sal, que não se esquecesse do sal. A criada aprestava-se para sair, voltava atrás para acrescentar na memória mais uma recomendação, mais um nome na lista. Meu pai só dizia que era preciso calma, não se ouvia nada, seria boato, era preciso saber primeiro o que acontecera. Foi o que perguntei. A resposta veio dramática da minha mãe: o padeiro trouxera a novidade, tinha dito que houvera uma revolução. Meu pai comentou que, se tinha havido, já não havia, visto que tudo estava sossegado. A criada parecia espavorida com a ideia de uma revolução, mas ansiosa por ir à rua, a pretexto de mercearias, para saber do que se tratava. Minha mãe, às observações de meu pai, respondia: - Já não se lembrava do que uma revolução era? Não se lembrava de como tudo fechava por causa dos assaltos às lojas? E daquela vez que tinham ficado dias sem ter onde comprar nada? Ele respondia que, ora essa, dessa vez, com tiros e tudo na rua, o merceeiro nunca deixara de mandar o pobre do marçano a saber se era preciso alguma coisa, a trazer as compras.
- Mas que foi que o padeiro disse?
- Que houve uma revolução esta noite.
- Aonde?
- Aqui em Lisboa! - e minha mãe acrescentou: - Eu estava mesmo à espera que isso acontecesse qualquer dia. Já estavam cansados de paz e sossego, é o que é. E agora vai ser o mesmo inferno de dantes.
- Mas não sabemos o que aconteceu realmente, e está tudo tão calmo, não se ouve nada, será um boato. Ou a coisa não foi séria - dizia o meu pai.
- Claro que foi séria! Essas coisas são sempre muito sérias. Daqui de casa não sai ninguém - e minha mãe fitava-me e a meu pai - que eu não quero ficar numa aflição, e sozinha aqui, sem um homem em casa. Deus me livre.
- Tu estás doida? Então não hei-de ir para o emprego?
A criada, à porta, hesitava. Minha mãe dardejou uma ordem:
- Vá lá à mercearia, e de caminho pergunte o que é que houve
- e ela saiu.
Meu pai disse: - O melhor é eu telefonar para o escritório, a saber o que se passou, o que é que há.
O telefone naquele tempo, na maior parte das casas, era um imponente bibelô preto que ninguém usava senão em emergências extremas. O telefone só tocava, ou só era levantado do gancho, em correlação necessária com momentosos eventos.
- Isso, telefona, pergunta para lá - apoiou minha mãe, e em procissão seguimos atrás dele em direcção ao objecto, no fundo do corredor, na esquina para a sala de jantar, sobre uma peanha de que pendia um napperon branco que mais fazia ressaltar a nobre dignidade do monstrinho negro.
Quando meu pai falou, era evidente que tudo corria normalmente no escritório, apesar da excitação que se sentia que o telefone estava a transmitir e que ele pontuava de movimentos afirmativos de cabeça e de alguns ahs intercalados. Pousando o auscultador no gancho, meu pai deixou correr uns instantes, saboreando a solenidade da expectativa, e depois resumiu o que ouvira: - Parece que a Armada se revoltou, e alguns navios iam pelo rio abaixo, e os fortes meteram-nos no fundo. Mas não aconteceu mais nada.O governo domina a situação, já acabou tudo.
- Ora... - comentou minha mãe - isso é sempre o que os governos dizem. O melhor é esperar até à manhã, e, se não houver tiroteio entretanto, é porque então é verdade.
Não me contive: - Mas também houve este tiroteio agora, e não se ouviu nada cá em casa...
Minha mãe ia responder-me asperamente quando a criada voltou afogueada de notícias: - Ai minha senhora, lá na mercearia estava um ror de gente (Vêem? - triunfou minha mãe para meu pai) e diz que houve uma revolução e que já acabou mas não se sabe se acabou ou não porque pode rebentar outra coisa e que foram uns navios da guerra (- De guerra - emendou minha mãe) que desataram aos tiros e mataram os oficiais todos e depois foram ao fundo porque o governo mandou que fossem metidos ao fundo e os fortes foi que os meteram ao fundo e agora não se sabe mais nada e parece que está tudo quieto. Minha senhora, as batatas subiram, e o bacalhau e o arroz também, e o senhor Joaquim(era o dono da mercearia) diz que podem faltar e por isso é mais caro.
- Estamos como dantes - comentou minha mãe - sempre que lhe cheirava a revolução esse homem subia o preço de tudo. É mau sinal.
- Vou mas é para o escritório, que já estou atrasado - disse o meu pai.
- Não, não vais,que eu não quero ficar sozinha numa inquietação destas.
- O rapaz está aí.
- Quando é que ele parou em casa alguma vez? Assim que estiver arranjado, sai-me pela porta fora, que não há quem o agarre.
- Bem, até logo. Depois eu telefono - e foi saindo com minha mãe a clamar no patamar da escada: uma falta de juizo e de prudência, e ela abandonada à sua aflição.
Fechada a porta, minha mãe voltou-se para mim: - Tu tens alguma coisa que ver com isto? - e a criada fitava-me com ar pasmado.(...)
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in Sinais de Fogo
Jorge de Sena
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