aldeia portuguesa
O Tio Bento das Sacas
A sua morada era uma dependência devoluta duma casa situada na margem da estrada, no centro da povoação. O seu ofício era o de fazer paus para socos. Convivia com os transeuntes que lhe passavam ao rés-da porta, ali negociava com os seus fornecedores, e com todos cavaqueava, quer nas horas de folga quer nas de trabalho.
Mas vivia só. E era gago; sobretudo quando era assaltado por emoções fortes.
Na habitação que ocupava tinha todo o seu mundo. No meio dela situava-se o cepo sobre que trabalhava. Ao lado, o lar onde cozinhava as refeições, a mesa onde comia, e a um canto, a cama onde dormia.
E ao mesmo tempo que trabalhava, ia fazendo a comida.
.
Sentado em frente do cepo e rodeado de cavacos e aparas de amieiro que se amontoam à sua volta, ele vai debouçando com a enxó o taco de madeira que quer transformar em pau de tamanco. A enxó desbasta cavaco a cavaco, corta, escava, afunda, e começam a aparecer os contornos da obra que se pretende obter. Agora é o tacão a sobressair. Uns golpes transversais e longitudinais vibrados com mais energia, e ele surge, destaca-se e afila-se. Depois vem o formão afeiçoar as formas, delinear as curvas, abrir sulcos.
E, antes de entrar em nova fase de trabalhos, examina a obra, vira-a e revira-a em todas as direcções.
Então, apoiando o cabo do formão na axila do braço direito, com a mão do mesmo lado empunha a lâmina. O formão começa a desfiar aparas. Impelido pela força que sobre ele exerce o ombro direito, ele vai escavando e dando a forma desejada ao pau que a mão esquerda segura e coloca na posição conveniente.
.
O pensamento de Ti-Bento assim preso do trabalho que está a realizar, não se dissocia contudo, da lembrança do seu pequeno amigo que com ele conversava, o distraía, e lhe suavizava a monotonia de horas inteiras a fazer paus para tamancos.
- O João foi p'rá Póvoa. Foi p'ra caixeiro.
Ti-Bento ouviu em silêncio a notícia e, sentiu logo o travor amargo que ela lhe causara.
O formão continuava a rebaixar e a abrir sulcos; as aparas que o gume ia desprendendo saiam agora mais finas, leves, como papel. Caídas no lume, eram uma lambedela das chamas. O tacão estava pronto. A base para o metatarso e dedos estava a afeiçoar-se e a destacar-se. Seguir-se-ia depois a curva enfranque para a arcada plantar. As aparas continuavam a desfiar-se diante do formão como pétalas de camélias desbotadas.
O panelo, esse, lá continuava a ferver. De quando em quando uma baforada de vapor levantava o testo e expandia-se no espaço.
Ti-Bento quedou-se a contemplar, absorto, o movimento de sobe e desce do testo e meditava; não como o pequeno Papin na força expansiva e elasticidade dos gases, mas na ausência do João. E, de braços cruzados sobre o regaço detendo na mão esquerda o pau novo do tamanco e, na direita, o formão com que o cavacara, desabafou num saudoso enleio:
-Oo ... ra basta, que ... o João ... foi p'ra taixeiro!
.
De Ti-Bento o coração estava decíduo. Estigmatizara-o a morte da mulher. Ferira-o. A solidão apoderara-se dele e privara-o do afago duma carícia que ameniza e consola, da frescura dum sorriso que suaviza e alegra, do calor duma palavra que conforta e anima, da magia dum olhar que enternece e encanta.
Para ele a vida consistia apenas em fazer paus de tamancos e vendê-los no mercado, às quartas - feiras, em Famalicão. Nesses dias para lá seguia com a mercadoria, montava a tripeça e atendia os fregueses.
Mas, no meio destas sombras que desfiguravam e escureciam a sua existência, dealbou uma luz, esperançosa e redentora. O seu espírito acarinhou-a e recolheu-a como uma fagueira esperança.
A senhora Ana Parranda que o marido abandonara há muitos anos, também ia à feira vender carduço. Eram companheiros de viagem e de feira. Para cá e para lá. Conversavam. Como ele, ela sentia-se só, rodeada de tristezas e amarguras. Como ele, ela sofria a friura da existência solitária. E da convivência entre os dois, irrompeu em labaredas um clarão que os estonteou e seduziu. Poderiam, então casar!...
E Ti-Bento, enamorado com essa sedutora ideia, tentou alimentar uma ilusória esperança. Tão ilusória, quão efémera!...
- Mas ela é casada, Ti-Bento.
Ti-Bento sacou o lenço tabaqueiro, para se assoar e, tirou do bolso do colete a caixa do rapé. Com ela aberta na mão esquerda e os dedos polegar e indicador da direita dentro dela, para tirar a pitada, fixou a nesga de céu azul por baixo da padieira da porta e, num radioso anseio, como solução segura:
-Não ... que agora, ... há o debotche ! ...(1)
Rates,Junho de 1968
Joaquim D. CancelaNa habitação que ocupava tinha todo o seu mundo. No meio dela situava-se o cepo sobre que trabalhava. Ao lado, o lar onde cozinhava as refeições, a mesa onde comia, e a um canto, a cama onde dormia.
E ao mesmo tempo que trabalhava, ia fazendo a comida.
.
Sentado em frente do cepo e rodeado de cavacos e aparas de amieiro que se amontoam à sua volta, ele vai debouçando com a enxó o taco de madeira que quer transformar em pau de tamanco. A enxó desbasta cavaco a cavaco, corta, escava, afunda, e começam a aparecer os contornos da obra que se pretende obter. Agora é o tacão a sobressair. Uns golpes transversais e longitudinais vibrados com mais energia, e ele surge, destaca-se e afila-se. Depois vem o formão afeiçoar as formas, delinear as curvas, abrir sulcos.
E, antes de entrar em nova fase de trabalhos, examina a obra, vira-a e revira-a em todas as direcções.
Então, apoiando o cabo do formão na axila do braço direito, com a mão do mesmo lado empunha a lâmina. O formão começa a desfiar aparas. Impelido pela força que sobre ele exerce o ombro direito, ele vai escavando e dando a forma desejada ao pau que a mão esquerda segura e coloca na posição conveniente.
.
O pensamento de Ti-Bento assim preso do trabalho que está a realizar, não se dissocia contudo, da lembrança do seu pequeno amigo que com ele conversava, o distraía, e lhe suavizava a monotonia de horas inteiras a fazer paus para tamancos.
- O João foi p'rá Póvoa. Foi p'ra caixeiro.
Ti-Bento ouviu em silêncio a notícia e, sentiu logo o travor amargo que ela lhe causara.
O formão continuava a rebaixar e a abrir sulcos; as aparas que o gume ia desprendendo saiam agora mais finas, leves, como papel. Caídas no lume, eram uma lambedela das chamas. O tacão estava pronto. A base para o metatarso e dedos estava a afeiçoar-se e a destacar-se. Seguir-se-ia depois a curva enfranque para a arcada plantar. As aparas continuavam a desfiar-se diante do formão como pétalas de camélias desbotadas.
O panelo, esse, lá continuava a ferver. De quando em quando uma baforada de vapor levantava o testo e expandia-se no espaço.
Ti-Bento quedou-se a contemplar, absorto, o movimento de sobe e desce do testo e meditava; não como o pequeno Papin na força expansiva e elasticidade dos gases, mas na ausência do João. E, de braços cruzados sobre o regaço detendo na mão esquerda o pau novo do tamanco e, na direita, o formão com que o cavacara, desabafou num saudoso enleio:
-Oo ... ra basta, que ... o João ... foi p'ra taixeiro!
.
De Ti-Bento o coração estava decíduo. Estigmatizara-o a morte da mulher. Ferira-o. A solidão apoderara-se dele e privara-o do afago duma carícia que ameniza e consola, da frescura dum sorriso que suaviza e alegra, do calor duma palavra que conforta e anima, da magia dum olhar que enternece e encanta.
Para ele a vida consistia apenas em fazer paus de tamancos e vendê-los no mercado, às quartas - feiras, em Famalicão. Nesses dias para lá seguia com a mercadoria, montava a tripeça e atendia os fregueses.
Mas, no meio destas sombras que desfiguravam e escureciam a sua existência, dealbou uma luz, esperançosa e redentora. O seu espírito acarinhou-a e recolheu-a como uma fagueira esperança.
A senhora Ana Parranda que o marido abandonara há muitos anos, também ia à feira vender carduço. Eram companheiros de viagem e de feira. Para cá e para lá. Conversavam. Como ele, ela sentia-se só, rodeada de tristezas e amarguras. Como ele, ela sofria a friura da existência solitária. E da convivência entre os dois, irrompeu em labaredas um clarão que os estonteou e seduziu. Poderiam, então casar!...
E Ti-Bento, enamorado com essa sedutora ideia, tentou alimentar uma ilusória esperança. Tão ilusória, quão efémera!...
- Mas ela é casada, Ti-Bento.
Ti-Bento sacou o lenço tabaqueiro, para se assoar e, tirou do bolso do colete a caixa do rapé. Com ela aberta na mão esquerda e os dedos polegar e indicador da direita dentro dela, para tirar a pitada, fixou a nesga de céu azul por baixo da padieira da porta e, num radioso anseio, como solução segura:
-Não ... que agora, ... há o debotche ! ...(1)
Rates,Junho de 1968
(1) divórcio
Sem comentários:
Enviar um comentário