quinta-feira, 31 de julho de 2014

Paz na Palestina

O vergonhoso massacre  na Faixa de Gaza deve-nos fazer pensar  no que de bom se poderia fazer, se não houvesse tanto cinismo, injustiça e ganância entre os senhores que mandam e os que deles se servem. Os ódios são diabolicamente fabricados para garantirem  guerras de que alguns poderosos beneficiam  e claro está, os mais frájeis, nomeadamente as crianças, são indiscutivelmente as vítimas.
E é neste mundo em desequilíbrio que surgem, mesmo assim, pessoas grandes que são capazes de projectos, que contrariando tudo aquilo que nos querem fazer crer, põem "inimigos" a trabalharem em conjunto, transmitindo ideias de paz, beleza, harmonia e solidariedade.

 A este propósito escrevi há já alguns anos:


         Aplausos para Daniel Barenboim e a sua West-Eastern Divan Orchestra

   No passado dia 7 o Grande Auditório da Gulbenkian esgotou para ouvir Beethoven (Abertura «Leonore III»op72c), Arnold Schonberg ( Variações para Orquestra, op31) e Tchaikovsky (Sinfonia Nº 6 em Si menor, op. 74, «Patética») pela orquestra criada em 1999 pelo músico  israelita Daniel Barenboim e o intelectual palestiniano Edward Said, já falecido.
As palavras, no nome da orquestra, West-Eastern Divan referem-se a uma colecção de poemas de Goethe em homenagem a este poeta alemão, pela sua universalidade, e que curiosamente começou a estudar arábico com mais de sessenta anos.
A orquestra, constituída por jovens músicos israelitas e de outros países do Médio Oriente, não é apenas um projecto musical, mas visa estabelecer um diálogo entre países de culturas tradicionalmente rivais. Os trabalhos tiveram início em Chicago em 2002, mas a orquestra veio a estabelecer-se em Sevilha em 2004 graças ao apoio institucional e financeiro do Governo da Região Autónoma da Andaluzia. Criaram a Fundação Barenboim-Said com sede em Sevilha, e a Barenboim-Said Foundation USA nos Estados Unidos; mas esta, só para angariação de fundos. O projecto é liderado por Barenboim e por Maria Said, viúva de Edward Said. A base da orquestra é constituída por um número igual de músicos israelitas e palestinianos aos quais se juntam músicos da Andaluzia e ainda outros alunos como observadores. O Governo da Andaluzia atribui bolsas aos alunos dotados e com poucos recursos económicos, para estudarem na Europa e nos Estados Unidos.
A orquestra têm-se apresentado em diversos países europeus, e americanos, tendo actuado pela primeira vez num país árabe em 2003, (Rabat) e em 2005 na Palestina(Ramallah). Tem gravado CDs/DVDs.
Com uma programação excelente, Barenboim dirigiu a orquestra com a sua forma muito peculiar, não excedendo o gesto e não faltando o necessário. Imprime confiança, sentimento, rigor. No final a plateia manteve-se de pé aplaudindo continuada e energicamente. Veio-me à memória o que se passou no Coliseu há uns anos a traz; Barenboim regia a Sinfónica de Chicago e tocava Mahler. Quando terminou, a assistência levantou-se de uma só vez, como uma mola. Ouviu-se um ah!!! abafado,  de espanto,  e soltaram-se os aplausos!

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terça-feira, 1 de julho de 2014

Sophia



 
A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Sousa-Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.
Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. E apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.
E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras. Diz o coro de Esquilo: «Nenhuma muralha defenderá aquele que, embriagado com a sua riqueza, derruba o altar sagrado da justiça.» Pois a justiça se confunde com aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência.
A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona, a poesia do nosso tempo não aprendeu a ceder aos desastres. Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa.
O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade e de consciência, ele está a contribuir para a formação duma consciência comum. Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.
Eis-nos aqui reunidos, nós escritores portugueses, reunidos por uma língua comum. Mas acima de tudo estamos reunidos por aquilo a que o Padre Teilhard de Chardin chamou a nossa confiança no progresso das coisas.
E tendo começado por saudar os amigos presentes quero, ao terminar, saudar os meus amigos ausentes: porque não há nada que possa separar aqueles que estão reunidos por uma fé e por uma esperança *.
Sophia de Mello Breyner Andresen

*(Texto lido em 11 de Julho de 1964 no almoço de homenagem promovido pela Sociedade Portuguesa de Escritores, por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuído a Livro Sexto).


Publicado no facebook por Eduardo Graça, a propósito da trasladação de Sophia de Mello Breyner Andresen para o Panteão Nacional.

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