domingo, 28 de fevereiro de 2010

viagens

catedral de Antuérpia(pormenor)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Contrastes


O inverno em Sta Maria do Bouro






terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Migalhas que ficaram V


aldeia portuguesa



O Tio Bento das Sacas


A sua morada era uma dependência devoluta duma casa situada na margem da estrada, no centro da povoação. O seu ofício era o de fazer paus para socos. Convivia com os transeuntes que lhe passavam ao rés-da porta, ali negociava com os seus fornecedores, e com todos cavaqueava, quer nas horas de folga quer nas de trabalho.
Mas vivia só. E era gago; sobretudo quando era assaltado por emoções fortes.
Na habitação que ocupava tinha todo o seu mundo. No meio dela situava-se o cepo sobre que trabalhava. Ao lado, o lar onde cozinhava as refeições, a mesa onde comia, e a um canto, a cama onde dormia.
E ao mesmo tempo que trabalhava, ia fazendo a comida.
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Sentado em frente do cepo e rodeado de cavacos e aparas de amieiro que se amontoam à sua volta, ele vai debouçando com a enxó o taco de madeira que quer transformar em pau de tamanco. A enxó desbasta cavaco a cavaco, corta, escava, afunda, e começam a aparecer os contornos da obra que se pretende obter. Agora é o tacão a sobressair. Uns golpes transversais e longitudinais vibrados com mais energia, e ele surge, destaca-se e afila-se. Depois vem o formão afeiçoar as formas, delinear as curvas, abrir sulcos.
E, antes de entrar em nova fase de trabalhos, examina a obra, vira-a e revira-a em todas as direcções.
Então, apoiando o cabo do formão na axila do braço direito, com a mão do mesmo lado empunha a lâmina. O formão começa a desfiar aparas. Impelido pela força que sobre ele exerce o ombro direito, ele vai escavando e dando a forma desejada ao pau que a mão esquerda segura e coloca na posição conveniente.
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O pensamento de Ti-Bento assim preso do trabalho que está a realizar, não se dissocia contudo, da lembrança do seu pequeno amigo que com ele conversava, o distraía, e lhe suavizava a monotonia de horas inteiras a fazer paus para tamancos.
- O João foi p'rá Póvoa. Foi p'ra caixeiro.
Ti-Bento ouviu em silêncio a notícia e, sentiu logo o travor amargo que ela lhe causara.
O formão continuava a rebaixar e a abrir sulcos; as aparas que o gume ia desprendendo saiam agora mais finas, leves, como papel. Caídas no lume, eram uma lambedela das chamas. O tacão estava pronto. A base para o metatarso e dedos estava a afeiçoar-se e a destacar-se. Seguir-se-ia depois a curva enfranque para a arcada plantar. As aparas continuavam a desfiar-se diante do formão como pétalas de camélias desbotadas.
O panelo, esse, lá continuava a ferver. De quando em quando uma baforada de vapor levantava o testo e expandia-se no espaço.
Ti-Bento quedou-se a contemplar, absorto, o movimento de sobe e desce do testo e meditava; não como o pequeno Papin na força expansiva e elasticidade dos gases, mas na ausência do João. E, de braços cruzados sobre o regaço detendo na mão esquerda o pau novo do tamanco e, na direita, o formão com que o cavacara, desabafou num saudoso enleio:
-Oo ... ra basta, que ... o João ... foi p'ra taixeiro!
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De Ti-Bento o coração estava decíduo. Estigmatizara-o a morte da mulher. Ferira-o. A solidão apoderara-se dele e privara-o do afago duma carícia que ameniza e consola, da frescura dum sorriso que suaviza e alegra, do calor duma palavra que conforta e anima, da magia dum olhar que enternece e encanta.
Para ele a vida consistia apenas em fazer paus de tamancos e vendê-los no mercado, às quartas - feiras, em Famalicão. Nesses dias para lá seguia com a mercadoria, montava a tripeça e atendia os fregueses.
Mas, no meio destas sombras que desfiguravam e escureciam a sua existência, dealbou uma luz, esperançosa e redentora. O seu espírito acarinhou-a e recolheu-a como uma fagueira esperança.
A senhora Ana Parranda que o marido abandonara há muitos anos, também ia à feira vender carduço. Eram companheiros de viagem e de feira. Para cá e para lá. Conversavam. Como ele, ela sentia-se só, rodeada de tristezas e amarguras. Como ele, ela sofria a friura da existência solitária. E da convivência entre os dois, irrompeu em labaredas um clarão que os estonteou e seduziu. Poderiam, então casar!...
E Ti-Bento, enamorado com essa sedutora ideia, tentou alimentar uma ilusória esperança. Tão ilusória, quão efémera!...
- Mas ela é casada, Ti-Bento.
Ti-Bento sacou o lenço tabaqueiro, para se assoar e, tirou do bolso do colete a caixa do rapé. Com ela aberta na mão esquerda e os dedos polegar e indicador da direita dentro dela, para tirar a pitada, fixou a nesga de céu azul por baixo da padieira da porta e, num radioso anseio, como solução segura:
-Não ... que agora, ... há o debotche ! ...(1)

Rates,Junho de 1968
Joaquim D. Cancela
(1) divórcio

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Quadras e Ditos I

Colecção obtida em azulejos, pratos, anúncios, etiquetas, recolhida por meu Pai

"Comer bem feito / Faz bom proveito"

A juventude treinada
Que vai à competição
Bebe Casa da Calçada
Se quer voltar Campeão

Que bom efeito que mete,
Com uma carne mal passada,
O precioso clarete
Da tal Çasa da Calçada

À conversa adjectivada
Não me prendo... não me iludo!
Disse Casa da Calçada?
Disse vinho e disse tudo.

P´ra conquistar um negócio
Ofereça uma almoçarada;
Mas não esqueça o tal sócio
-Vinho Casa da Calçada.

Nesta noite, S. João
Tem uma fonte encantada,
Onde todos beberão
Vinho Casa da Calçada

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Não se perdeu nenhuma coisa em mim

Casa de Aquilino(pormenor)



Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
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Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Rosto nu

joom gallery

Rosto nu na luz directa
Rosto suspenso, despido, permeável,
Osmose lenta.
Boca entreaberta como se bebesse,
Cabeça atenta.
Rosto desfeito,
Rosto sem recusa onde nada se defende,
Rosto que se dá na angustia do pedido,
Rosto que as vozes atravessam.
Rosto derivando lentamente,
Pressentimento que os laranjais segredam,
Rosto abandonado e transparente
Que as negras noites de amor em si recebem.
Longos raios de frio correm sobre o mar
Em silêncio ergueram-se as paisagens
e eu toco a solidão com uma pedra.
Rosto perdido
Que amargos ventos de secura em si sepultam
E que as ondas do mar puríssimas lamentam.
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Sophia de Melo Breyner Andresen